As notícias envolvendo a apreensão, pela Receita Federal, de um conjunto de joias avaliadas em R$ 16.5 milhões, tido como um presente do governo da Arábia Saudita à ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, trazidas ilegalmente ao Brasil, por um assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em outubro de 2021, e seus desdobramentos tomaram conta da imprensa, causando muita revolta e indignação por grande parte da sociedade.
“Existem apenas duas ou três histórias na humanidade e elas se repetem de forma tão insistente como se nunca tivessem acontecido antes”, já dizia a escritora Willa Cather, em um dos seus livros. Sempre considerei essa frase linda do ponto de vista literário, mas um tanto exagerada. Todavia, em se tratando de ex-presidentes do Brasil, essa frase faz todo o sentido. Mais uma vez temos um ex-presidente acusado por grande parcela da sociedade de ter tentado incorporar ao seu patrimônio pessoal ou de sua mulher, bens que pertenceriam ao acervo da presidência, ou seja, à União, e que por obvio “teria” cometido no mínimo o crime de peculato. Conjuguei o verto “ter” no “futuro do pretérito” porque não se pode responsabilizar ninguém sem o devido processo legal, e embora minha primeira impressão pelo o que li na imprensa seja de algo “muito estranho”, não sou integrante do Ministério Público, juiz ou ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) para acusar ou julgar, ainda mais sem conhecer todos os fatos e as respectivas provas, principalmente considerando as reviravoltas que ocorrem nas narrativas quando os fatos são apurados por quem tem competência para tanto. Quem pode afirmar, sem conhecer todas as provas, que a ex-primeira-dama realmente sabia da existência desse presente, que esse verdadeiro tesouro era um presente para ela?
Lembrem-se que ao examinar as acusações contra o então ex-presidente Lula e a ex-presidente Dilma, referentes a apropriação de bens de União, fartamente expostas pela imprensa e redes sociais na época, o TCU, em 2016, relatou no acórdão TCU 2255/2016 que “dos 568 itens recebidos nos dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apenas nove foram incorporados ao patrimônio da União (1,58%) e dos 144 bens recebidos nos dois mandatos da presidente Dilma Vanna Rousseff somente seis foram incorporados (4,17%)”, bem como destacou que pelos processos existentes na data do acórdão, acima mencionado, não havia “como garantir que os acervos presumidamente privados de 568 bens, pertencente ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o acervo de 144 bens, registrado como de propriedade da presidente Dilma Vanna Rousseff, tenham sido corretamente classificados.”
Conforme matéria publicada em 10 de janeiro deste ano, no site do Estadão, o TCU apurou que 434 presentes recebidos pelo presidente Lula não deveriam ter sido apropriados por ele, sendo que 306 presentes foram encontrados na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e devolvidos à União, mas que 74 presentes, com valor calculado em R$ 199.436,04, não foram localizados.
No total, o presidente Lula e a ex-presidente Dilma acabaram por devolver para a União 472 presentes, e, em 2020, o TCU encerrou os trabalhos por entender que as recomendações do acórdão acima citado haviam sido atendidas, ou seja, os problemas haviam sido sanados, bem como o Ministério Público Federal (MPF), arquivou o processo que apurava o caso, por não ter encontrado “irregularidade apta a ensejar o ajuizamento de ação de improbidade administrativa”. Importante lembrar que também foi comprovado que o famoso “Crucifixo”, que muitos diziam ter sido furtado pelo ex-presidente, era dele mesmo, e assim ele sequer foi tornado réu por esse motivo.
Falta de legislação específica aplicável e o entendimento do TCU
Por incrível que pareça, até hoje, mesmo com todos os escândalos envolvendo bens doados para presidentes, ainda não existe uma lei específica sobre a questão dos presentes recebidos por presidentes.
Tanto a Lei 8.394/1991 quanto o Decreto 4.344/2002, que dispõem sobre a preservação, organização e proteção “dos acervos documentais privados” dos presidentes da República, não regulam a questão da troca de presentes entre chefes de Estado e de Governo por ocasião das “Visitas Oficiais” ou “Viagens de Estado” do presidente da República ao exterior, ou quando das “Visitas Oficiais” ou “Viagens de Estado” de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil.
Assim, na falta de um instrumental jurídico adequado, o TCU teve de construir os parâmetros balizadores para julgamento de processos referentes a destinação dos presentes oferecidos ou trocados pelos chefes de Estado e de Governo.
E foi no referido (acórdão TCU 2255/2016), que os parâmetros jurídicos foram estabelecidos, e que o TCU determinou à Secretaria de Administração da Presidência da República e ao Gabinete Pessoal do Presidente da República que também fossem incorporados ao patrimônio da União “todos os presentes recebidos, nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo Presidente da República”.
O primeiro fundamento utilizado para que os presentes “trocados protocolarmente, portanto sem cerimônia específica para troca de presentes, devam igualmente integrar o patrimônio da União”, foi a aplicação dos princípios da moralidade, legitimidade e razoabilidade.
Para o TCU, “a melhor aplicação ao tema é de que quaisquer itens recebidos por trocas oficiais sejam bem públicos, uma vez que o cidadão, na qualidade de Presidente da República, somente está recebendo tal bem em função da natureza pública e representativa do cargo que está temporariamente ocupando. Desse modo, o mais razoável é que os presentes nesta condição recebidos (excluídos os de consumo, por sua própria natureza depreciativa, e os de caráter personalizado), façam parte do patrimônio da União e, não, da pessoa física que, naquele momento, a representa oficialmente”.
Um outro parâmetro que deve ser considerado, segundo o TCU, é o fato de que “os presentes ofertados pelo Presidente da República aos chefes de estado e/ou de governo estrangeiros são adquiridos com recursos públicos da União, logo os presentes que ele receba em troca, também deveriam ser revertidos ao patrimônio da União.
Como se não bastasse, o TCU socorreu-se do “Direito Comparado”, buscando o direito vigente nos Estados Unidos da América que determina “que todos os presentes recebidos de governos estrangeiros acima de um valor máximo estabelecido são registrados, listados, mantidos e geridos por departamento específico do governo (Protocol Gift Unit [endnoteRef:3]), sendo essa listagem consolidada anualmente e disponibilizada em um sítio oficial do governo norte-americano. Caso o presidente ou a primeira-dama tenham interesse em manter algum desses presentes, devem indenizar o governo federal no valor avaliado do bem”.
Cumpre salientar que o TCU continua com o mesmo entendimento jurídico e, desse modo, no dia 1º de março deste ano foi julgado um caso correlato, referente à comitiva do governo Bolsonaro que foi ao Qatar, em 2019, e aprovado o acórdão 326/2023, que também considerou que o recebimento de presentes pelos integrantes da comitiva governamental contraria os princípios da moralidade e razoabilidade. Assim, os beneficiados pelos relógios Hublot e Cartier, avaliados em R$ 53.000,00, cada um, deverão entregá-los para a União, para que passem a integrar o patrimônio público brasileiro.
Esse caso envolvendo as joias é realmente estranho porque não faz o menor sentido o governo, após a apreensão dos objetos, não ter declarado imediatamente como bem público as joias e relógios avaliados em R$ 16.500.000,00, descumprindo a orientação fixada pelo Tribunal de Contas no acórdão TCU 2255/2016. E o que é pior, segundo noticiado pela imprensa, documentos comprovam que assessores da Presidência e do Ministério de Minas e Energia argumentaram que somente depois do desembaraço na alfândega haveria a definição se as joias iriam para o acervo público ou para o acervo privado da Presidência. Isso é tão surreal que fica difícil de acreditar.
Não sendo suficiente esse cenário desastroso, o ex-presidente Bolsonaro admitiu, no dia 08 deste mês, que recebeu como presente um outro pacote com relógio, caneta, abotoadura, anel e um tipo de rosário, todos da Chopard. Isso tudo vai dar muito “pano pra manga” e trabalho para muitos advogados tributaristas e criminalistas com certeza.
Voltando às joias, como foi informado para a Receita que as joias não pertenciam a quem as estava trazendo ao Brasil, que seriam um presente para a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, a entrada das joias em território nacional passou a ser disciplinada pelo regime da importação comum previsto, conforme disposto no Decreto nº 6.759, de 05 de fevereiro de 2009. Para evitar todo esse problema, bastaria que o portador das joias ou representantes do governo tivessem realizado a declaração de importação das joias, junto a alfândega, esclarecendo que se tratava de um presente para o acervo da União, e nenhuma tributação seria aplicada. Esse fiasco, que será relembrado e discutido por muito tempo, teria sido evitado se cumprida a legislação aduaneira.
Infelizmente, os envolvidos resolveram agir de forma açodada e indevida. Optaram por pressionar os servidores da Receita Federal a agir em desacordo com as normas legais, não tiveram sucesso, e o escândalo veio à tona. A Polícia Federal, em atenção à solicitação realizada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, já abriu inclusive inquérito para investigar suposta tentativa de integrantes do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro de trazerem ilegalmente para o país joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. Da mesma forma, o Ministério Público Federal (MPF) já solicitou para a Receita Federal mais informações. Isso parece ser apenas o começo das investigações que podem tomar diversos rumos e detectar diversos delitos se não for comprovado que eram realmente presentes oferecidos pela Arábia Saudita ao Brasil, ainda que simbolicamente destinados à ex-primeira-dama que, para piorar a situação do ex-presidente, declarou para a imprensa: “Quer dizer que eu tenho tudo isso e não estava sabendo?”
Impossível não associar o escândalo que agora também recai sobre a ex-primeira-dama, ao escândalo causado em razão de um outro colar de diamantes, cuja responsabilidade pela compra acabou recaindo injustamente sobre a rainha Maria Antonieta, e que contribuiu imensamente para que os franceses lhe cortassem a cabeça, e depusessem a decadente monarquia francesa. Vivemos em tempos mais civilizados, mas reputações podem acabar por muito menos do que isso e a justiça deve ser aplicada a todos. Logo teremos novidades com certeza. É só aguardar.
Esse tipo de situação, em que a Receita Federal foi pressionada a não agir exatamente como determina a legislação aplicável, por diversos integrantes do governo passado, reforça a importância da estabilidade do servidor público. Somente isso garante que a lei seja obedecida, mesmo quando autoridades hierarquicamente superiores insistem que outros caminhos sejam seguidos. Parabéns para os servidores da Receita Federal.