Durante uma degustação na Serra, o sommelier tinha horrores de coisas para dizer. Para os leigos, esses que costumam chamá-lo de “enochato”, aquele blábláblá dificilmente desviaria os olhos da beleza dos parreirais. Ou afastaria a boca, da borda da taça. Mas desviou e afastou, embora o verde das videiras fosse exuberante, e o tinto do vinho, mais ainda.
A boca decidiu esperar, os olhos encararam o sommelier, e os ouvidos se interessaram pela carrada de frases derramadas. Elas diziam que não existe um “terroir” melhor do que o outro. Não há uma extensão de terra superior à sua vizinha. Elas são apenas diferentes. Eram, de fato, palavras com sentido como as que costumam trazer outras lembranças. Quando vi, estava longe dos parreirais, pensando no calhamaço do Kant sobre o gosto. Lá tem uma síntese, depois de um blábláblá mais retórico do que o de um sommelier: ao fim e ao cabo, gosto não se discute.
Agora pouco interessava a harmonização, o nível de tanino, a quantidade de flavonoides ou de papilas gustativas em cada ser humano. O essencial já havia sido falado. Não há um “terroir” melhor do que o outro. Não existe um que seja superior. Cada qual representa o seu lugar, onde é preciso respeitar o desejo de um paladar individual. O vinho, segundo o mestre, não é sequer o ator principal da apresentação, mas mero coadjuvante do que mais importa: o alimento.
Ali desejei que todo ser humano pudesse ouvi-lo, em especial os racistas, antissemitas, misóginos, intolerantes das alteridades de credo, etnia, cor, raça, gênero, religião, orientação sexual.
Não há “terroir” superior, logo valeria o mesmo para os habitantes da terra inteira, nas relações entre si, e com seus vizinhos próximos ou distantes. Que se sentissem como um vinho, coadjuvantes do que mais importa: o alimento da paz e da tolerância.
Mas uma degustação é como a beleza na curva de passagem: zum! O instante de uma canção: zaz!
Breve, transitório e, uma vez finda, retomamos a dura realidade, com seus intragáveis abusos de poder de “terroir” e gente. Um problema trágico, até hoje insolúvel.
Para algum alívio imediato, seria preciso tomar um porre. Para outro, mais prolongado, precisava contar essa história.
Por via das dúvidas, fiz os dois.