“Esta história, este episódio, esta aventura, dê a ela o nome que quiser.”
Conrad
Os meus leitores da Sler sabem que já comecei a escrever minha autobiografia por aqui. Comecei de forma triste, pelo falecimento de minha tia, o que me fez rever passagens de minha infância. Agora aposentado, posso fazer o balanço de como se fez minha formação de historiador e educador com o objetivo de dizer que essa trajetória é a de muitos de minha geração: a dos formados nos anos 80, durante a abertura política, que, como eu, exerceram sua profissão durante quarenta anos, vivendo as contradições da passagem de um modelo de desenvolvimento democrático-liberal para o ultraneoliberal.
Minha geração é, claro, também produto de um tempo e um lugar. Há uma foto da turma de minha formatura. Eu estou nela, na primeira fila, de cavanhaque e óculos, de uma miopia que sempre me acompanhou pela leitura constante. Nada contrasta mais com o olhar otimista dos jovens estudantes que fomos nos anos 80 do que o pessimismo que vivemos nos anos 2020. Minha geração de historiadores foi formada nos corredores da UFRGS daquele período; compartilhou alegrias, tristezas e projetos de um mundo melhor; alguns seguiram carreira universitária enquanto outros, como eu, seguiram no serviço público, quer como professores, pesquisadores ou simplesmente abandonando a profissão em alguma carreira pública para sobreviver ou indo para o setor privado. O otimismo do passado era a esperança de, com nossa prática, contribuir para transformar o mundo; o pessimismo dos anos atuais é a constatação de que o ultraneoliberalismo acumula vitória atrás de vitória. Mas, como nas histórias do cinema, sempre há uma esperança.
Vi historiadores, mas também sociólogos, antropólogos e cientistas políticos de minha geração serem os primeiros a constatar as contradições do modelo de desenvolvimento que levou ao subemprego, à precarização e à terceirização de serviços. Eu, como muitos de minha geração, escrevemos páginas e páginas denunciando, criticando, mostrando os mecanismos perversos envolvidos nas políticas neoliberais. Fomos para escolas criticar o capitalismo, para o espaço público criticar a concentração de riqueza e a apropriação do público pelo privado. Sabíamos que estávamos do lado certo, só não prevíamos que a sociedade fizesse a opção pelo lado errado. Ainda estamos tentando entender por que isso aconteceu.
Nesse período, eu sobrevivi como intelectual, produzindo obras que traduziram o modo como vi estes mundos. Escrevo minhas memórias porque são também um testemunho de uma geração, preservam uma experiência e podem ajudar meus leitores a entender o que penso e como escrevo nas páginas de Sler. Também é uma forma de usar meu exemplo para incentivar futuros estudantes a seguirem o caminho do ensino de História para tentar conscientizar as gerações futuras, algo que considero urgente; a interessados escreverem sobre as suas experiências para mostrarmos, no mundo presenteísta, o valor do passado; e para mostrar o caminho que escolhi trilhar num universo acadêmico e profissional que é um entre tantos, possui alegrias e tristezas, mas que exige clareza nas raízes das problemáticas que se começa a investigar.
Devo muito do que produzi às questões colocadas por professores que conheci e admirei; às ideias colhidas ao longo de leituras de história e outras disciplinas ao longo dos anos; às conversas com amigos e colegas, da universidade, do Museu de Porto Alegre, da própria Secretaria Municipal da Cultura e da Câmara Municipal, lugares em que trabalhei por ser servidor municipal. Produzi e pesquisei na era pré-internet, o que significava, em primeiro lugar, a opção por livros físicos e não virtuais, ir a acervos documentais e não a sites de internet, conversar com pessoas olho no olho e não em grupos de WhatsApp. Eu posso afirmar com toda a certeza de que esse ainda é o melhor caminho para construir uma trajetória intelectual, ainda que os mais novos me critiquem.
Fazemos isso para produzir intelectualmente. É que hoje valorizamos e publicamos dezenas de páginas no mundo virtual, e eu mesmo faço isso aqui, mas naqueles tempos, publicar era o esforço inicial de ver impresso para compartilhar resumos, abstracts, e quando muito, artigos em revistas e jornais. Revisavam-se textos sem o uso da IA, apenas de ouvido e consultando a gramática. É claro que, aos poucos, tive de ceder à tecnologia, mas não faço isso sem deixar de ser um pouco teimoso, relutante, pois, para mim, a experiência física da pesquisa importa. Tive a sorte de realizar uma trajetória que envolveu realização de palestras e comunicações, pesquisas em acervos documentais, participação em mesas redondas, e uma produção cultural que pude realizar através de exposições, que se não tiveram a sorte de serem publicadas à época, posteriormente as reuni, durante a pandemia, em livros que testemunham minha atividade intelectual ao longo desses anos. Falar é algo para ser feito olho no olho, nunca mediado por um aplicativo.
Minha formação de historiador
Comecemos pelo início. Nasci em 1964, em Porto Alegre, e fui criado por minha mãe durante toda a infância. Lembro-me com satisfação, pois enquanto ela trabalhava, eu ficava na biblioteca infantil Lucília Minsen, aquela que era em frente à Santa Casa. Creio que, para o historiador que me tornei, isto teve sua importância. Meus pais separaram-se muito cedo, e apesar de ter visto meu pai algumas vezes – “estuda muito, rapaz” -, depois de certa idade nunca mais o vi. Ele não conheceu os livros que escrevi, nem soube do Mestrado e Doutorado que concluí. Mas sua presença foi fundamental, pois desde minha infância incentivou em mim o hábito de leitura. Fui e continuo sendo um historiador de origem urbana e pobre, que estudou em escolas estaduais pequenas, com quase pouco ou nenhum recurso de ensino, melhorando esta situação apenas no secundário, quando então conheci professores prodigiosos que me ampliaram a ambição pelo saber e depois quando iniciei minha carreira como servidor público, primeiro na Prefeitura Municipal e depois na Câmara de Vereadores.
Então, quando olho para trás, sinto necessidade de ser grato. Aos professores do IFCH/UFRGS, agradeço hoje terem despertado em mim o interesse pela história da cultura, adquirido nas aulas de Luís Roberto Lopes e de José Augusto Avancini; a preocupação com a pesquisa dos grupos urbanos, adquirida com Cláudia Fonseca; o interesse pela teoria, historiografia e vida cotidiana, inspirado pelo trabalho de Silvia Petersen; o registro constante e divulgação da pesquisa, com Sandra Pesavento; espírito investigativo, “nunca ceder do desejo”, de Luis Caon; a afetividade misturada com saber, de Marisa Eizirik; a importância política da educação, com Nalú Farenzena e o rigor filosófico com Ernildo Stein e Gerd Borheim. Também sou grato aos que tentaram fazer com que eu desistisse do curso de história: o professor Beleza, do curso pré-vestibular Mauá, que sempre me repreendia por querer ser “professor”; minha própria mãe, que preferia que eu fizesse direito, pois em ambos nunca era uma negativa verdadeira, soava mais como um alerta “quer continuar pobre, é?” E, de alguma forma, também foram importantes para eu ter a certeza pelas escolhas que fiz. Mas os professores que conheci na universidade marcaram minha formação por possuírem uma linguagem primorosa, um prazer pelo trabalho intelectual e um rigor metodológico, e com eles aprendi muito. Mas foram tempos difíceis. Cada livro que adquiri me custou caro; cada tempo roubado do trabalho para estudar me custou repreensões. Desde minha entrada na universidade e durante minha carreira, vivi o drama de estudar e sobreviver. Hoje, aposentado, olho ao meu redor: todos querem ser “influencer”, chegar a algum lugar sem esforço algum; querem ser “coach”, ensinar um curso em dicas. Nada mais distante.
É que no meu campo, o das humanidades, é necessário o esforço da pesquisa. Fiz diversas pesquisas ao longo de minha formação na universidade, que apresentei em seminários e congressos e que me valeram a publicação em Anais, quer sob a forma de resumos, quer sob a forma de artigos. Eu entrei no curso de história em 1983 e logo comecei a publicar minhas pesquisas de estudante nos Anais do Simpósio de História Antiga e depois nas reuniões anuais da SBPC. Eram análises sobre mitos, literatura e mitologia antiga, inspirados em autores como Mircea Eliáde, entre outros. Eram desdobramentos de temas de antiguidade, pois era assim que começava o currículo do curso, mas me chamavam a atenção, como futuro historiador que me tornei, as perguntas da filosofia antiga, as perguntas que o homem faz sobre si mesmo.
Já nesse momento, paralelamente, fazia estudos extraclasses. Explorei as relações da história com a psicanálise, a partir do pensamento de esquerda em Lucian Seve e Carlos Henrique Escobar, críticas ao pensamento freudiano que resgatam o caráter social da psicanálise. Ir além do que era ensinado, isto me interessava. Passava tardes nas bibliotecas da UFRGS ou PUC atrás de literatura, fuçava nas pastas “xerox” de outros professores. O que procurava? Novos textos, outras leituras. Descobri outros autores como Félix Guattari, que me ensinou que a análise histórica só poderá se efetivar quando o “conceito de desejo se cruzar com o conceito de produção”. Publiquei nos Anais do Congresso Interamericano de Psicologia, realizado em Buenos Aires, minhas observações sobre as semelhanças entre as discussões no campo da Psicologia e História sobre epistemologia e ciência, os paradigmas da história e ciências sociais, e principalmente, a emergência da pós-modernidade. Apresentava trabalhos como graduando em espaços de pós-graduandos. Eu me inscrevia, não tinha nada a perder. Está tudo em meu Lattes.
Ao final, tinha vários volumes de textos escritos, que viria a organizar tempos depois. Mas “Saber e Sexualidade: análise do discurso médico sobre a mulher, a criança e as doenças do sexo” foi meu primeiro texto reconhecido, minha monografia de conclusão de curso de Bacharelato em História, em 1987, sob a orientação de Sandra Pesavento. Até então, tudo era monografia. Agora não, era TCC. Ali analisei as condições de produção e características fundamentais do discurso médico higienista gaúcho, tomando por base as Teses da Faculdade de Medicina de Porto Alegre do início do século. Isto nunca tinha sido feito no Rio Grande do Sul, apesar de já estar sendo produzido, à época, em alguns centros de pesquisa de São Paulo e Rio de Janeiro.
Terminado o curso de História (licenciatura e bacharelado), tenho a idade de 23 anos e sou professor de história e pesquisador. Sou como tantos outros de minha geração, um aprendiz de minha profissão. Ensino uma história factual, que me faz aprender enquanto ensino, e uma história, a que chamávamos “Nova”, cheia de noções abstratas que os alunos gostavam, mas que sabíamos que nunca seriam tema de vestibular, o que era frustrante. Exerci o magistério e a pesquisa como servidor público concursado, como funcionário cedido da Câmara Municipal à Secretaria Municipal da Cultura – estratégia que desenvolvi para sobreviver. De partida, entendo que fui um bom professor – porque dedicado e porque tinha prazer no que fazia – mas sofri as mazelas da inserção e prática desse campo.
É que eu tinha tomado, desde muito cedo, um caminho que seria uma de minhas paixões de pesquisa na história, na história nova em ruptura com o ensino tradicional: a história da sexualidade. Me impressionou o comentário do Prof. Caon, num seminário de Psicanálise que cursei na década de 80: “a morte, o sexo e o desejo como definidores da existência”. Voilà! Era isto o que eu queria pesquisar então. Não apenas, como todo bom professor de esquerda, voltar-me para os conflitos sociais, a exploração e degradação humana – isto tudo era demasiado triste – mas sim o seu grau de humanidade – sua cultura, seus valores, sua ética, seus sentimentos. Enfim, a sexualidade. O que a humanidade busca? Que modernidade é esta que vivemos? O que move o homem? Qual é o desejo do homem? A pergunta do início do curso ainda não havia sido respondida.
Enquanto eu fazia a graduação, não havia no IFCH um espírito acolhedor à problemática da história da sexualidade – mas isto foi posteriormente modificado. Na pós-graduação em educação, isso mudou. Ali pude ter apoio para me aprofundar em autores que constituem meu apoio teórico fundamental e que sempre retornam aqui em meus textos em Sler, como Michel Maffesoli, Jean Baudrillard e Paul Virilio – teóricos pós-modernistas polêmicos, originais e muito criticados, mas que ofereciam um ponto de vista original para estas questões. A pós-graduação modificou meu percurso intelectual: dos estudos de história da sexualidade para as discussões contemporâneas e a reflexão da prática de sala de aula.
Minha formação de educador
Com a entrada no programa de pós-graduação em Educação, minhas leituras, pesquisas e problemas começam a mudar. Eu continuava participando das reuniões anuais da SBPC com artigos. Agora, diferente da graduação, buscava vincular o debate sobre a natureza da pós-modernidade à educação, numa linha que tem na obra de Maria Cecília Sanchez Teixeira, Antropologia, Cotidiano e Educação (Agir, 1990), sua inspiração.
A partir de 1990, já no Mestrado, enquanto divulgava os primeiros resultados de minha dissertação A Pedagogia de Eros, na Reunião Anual da SBPC, eu também tomava conhecimento das coletâneas organizadas por Adauto Novaes: O desejo, Ética, Tempo e História, que constituem para mim uma referência de leitura obrigatória. Posteriormente, vim a organizar o Seminário Artepensamento em Porto Alegre, conversar com Adauto Novaes, e esse diálogo reforçou a importância que dou ao chamado “pensamento nômade”, para usar uma expressão de Gilles Deleuze. Ele foi para mim o exemplo do mais raro pensamento autônomo, o desejo de construção de um caminho próprio, baseado na pesquisa, na leitura de diferentes autores, na relação com várias instituições, não apenas a Universidade. Enfim, um pesquisador interdisciplinar. Isto sim me provocava.
Eu ainda estava na Secretaria Municipal da Cultura nos anos 90, onde trabalhei com pesquisa com colegas notáveis como Flávio Krawczyk e Pedro Vargas, que hoje trabalham com história da arte no Museu de Arte de Porto Alegre. É desse sentido geracional que falo, não somente eu, mas de colegas como Anderson Vargas, Francisco Marshal, Tarson Nunes, Pedro Lairihoy, Cláudia Mauch e tantos outros. Havíamos sido alunos de Céli Pinto, Sergius Gonzaga, Luis Dario, Ernildo Stein e tantos outros mestres de nossa geração. Nos considerávamos “vinho de boa cepa”. Fazíamos grupos de estudo, discutíamos muito se a Nova História e a Pós-modernidade eram modismo ou não, mas se nos anos 80 ainda nunca se entrava a fundo nos seus textos, preferindo-se o marxismo, eu seguia o caminho contrário, e nos anos 90 eu dialogava com eles, pesquisava com eles, me apropriava deles para minha prática. Eu esforçava-me por realizar pesquisas nesse campo em temas que eu observei que só anos após foram incorporados pelo Departamento de História e pelo seu pós-graduação. Eu estava no Mestrado e observava à distância os primeiros sinais de sua incorporação, as primeiras dissertações de mestrado com as problemáticas e autores que estudava, como a de Claúdia Mauch, sobre policiamento, e de Anderson Vargas, sobre imprensa, entre outras.
Eu fiz, entretanto, uma trajetória intelectual diferente de muitos colegas em meu curso de pós-graduação. Diferente deles, que optaram por fazer sua pós-graduação na área de história, eu parti para a educação. Não fiz isso sozinho: outros foram para a Ciência Política, Artes, entre outras. Talvez por ser vítima dos temas que tanto procurava, não encontrei espaço em minha própria pós-graduação, a de História, para o que queria investigar, mas somente nos programas alheios. De certa forma, era um estrangeiro em minha própria área, como diria Nelson Brissac Peixoto. Buscava uma especialização em temas que me apaixonavam, que não encontravam à época espaço em meu CPG de formação, mas apenas em outros. Isso deve servir de exemplo para quem está na academia e sonha em seguir estudando: nem sempre dá para fazer o que se quer no lugar ideal. É preciso procurar.
Encontrei no CPG de Educação um novo lugar de pesquisa e trabalho. Licenciei-me da Câmara Municipal para fazer pós-graduação com Bolsa de Estudos, uma política notável pela qual todos temos de lutar. A diferença é que o curso de pós em educação já começava a incorporar em suas salas de aula as discussões mais contemporâneas de filosofia e modernidade, as quais eu também explorava. Isto foi fundamental para mim. Isto era o ponto que necessitava para construir meu próprio pensamento. Foi a oportunidade de estudar em profundidade novos pensadores, quer em Filosofia, como Jean Baudrillard, Michel Mafessoli e Michel Foucault, agora Gilles Deleuze e Paul Virilio, quer em Educação como Elza Nadai, Marcos A. Silva, Peter MacLaren e Paul Willis. Em poucas palavras, eles ajudaram-me a definir um campo de temas e problemas em história e educação. Isso acontece quando pensamos na dificuldade que é bancar o próprio desejo no social – como já dizia Caon em seus Seminários de Psicanálise, lá por volta de 1985, que eu fiz e nunca esquecerei. Cada colega e amigo passou por isso, na sua área ou fora dela.
Em 1992, concluí “A Pedagogia de Eros: territórios, vida cotidiana e saber nos programas de Educação Sexual nas escolas de Porto Alegre”, minha dissertação de Mestrado, que depois publiquei em livro. Em 2014, concluí meu doutoramento com a tese “Educação e Poder Legislativo”, orientada por Nalu Farenzena. Levei dez anos para concluir o doutorado. Por que tanto tempo? Eu o iniciei primeiro no CPG Educação/Unisinos, com bolsa paga pela Câmara Municipal de Porto Alegre. O término da bolsa, que durou um ano, impediu-me de concluir lá os estudos. Para os pobres, é sempre assim, não? A exclusão pela ausência de recursos. Durante cinco anos, prestei sucessivos exames para retornar à UFRGS, conseguindo uma vaga ao final. Sem bolsa, pois já havia retornado à Câmara, mas com a vantagem de que estava na área, era responsável pela ação educativa do legislativo. Se o mestrado me familiarizou com a cultura escolar, o doutorado me familiarizou com o campo das políticas educacionais. Eu tinha agora a base para meu trabalho no Memorial da Câmara: formação em história e doutorado em educação, e assim atendi escolas por mais de vinte anos. Foi assim também que criei no legislativo, com essa base, o programa Educação para Cidadania. Mas isso é tema de outro artigo autobiográfico.
Assim, eu não apenas recuperei o caráter histórico e cultural da problemática da Educação Sexual no mestrado, como a da Educação Política no doutorado. Minha tese analisou projetos de lei, discursos e mostrou, em dois períodos distintos, entre 2001 e 2008, as características da produção da legislação educacional do ponto de vista dos atores envolvidos, o que foi inédito. Seu mapeamento inspirou outros trabalhos e pesquisas sobre a Câmara Municipal, e eu mesmo, com estudos que vim a fazer posteriormente, tornei-me especialista na instituição.
O campo da memória social
Minhas práticas de pesquisa em educação na pós-graduação não foram as únicas que tive. Elas foram a base dos livros que escrevi e publiquei. Antes delas, ingressei no Centro de Pesquisa Histórica da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre em 1992, o que me deu a oportunidade de realizar pesquisas de campo no tema da memória social, que considero essenciais para minha formação de pós-graduação. Delas resultou, em 1993, o volume da coleção História dos bairros: A Grande Santa Rosa, quando estive nas Vilas Triângulo, Conjunto Fernando Ferrari, Guapuruvu, Santa Rosa e Nova Santa Rosa, conhecendo a comunidade, lideranças e problemas. Publiquei, no ano seguinte, ‘Percília, uma vivência de 100 anos’, a história de vida de uma ex-escrava moradora da Vila Pinto. A eles se sucedeu, em 1995, Lugar de mulher: pequena história da educação feminina em Porto Alegre, onde estudei a história do Colégio Bom Conselho, do Instituto Porto Alegre, do Instituto de Educação e da Seção Feminina da Escola Parobé. Seguiram-se a eles “Memória dos Bairros: A Grande Glória”, contemporâneos da pesquisa que fiz para os Bairros Belém Velho e Vila Tripa (o primeiro, onde sou um dos pesquisadores, o segundo, que não foi publicado), todos pela Secretaria Municipal de Cultura. Em minha página pessoal jorgebarcellos.pro.br encontram-se para download não apenas essas produções, mas todas as demais que organizei e que não tive oportunidade aqui de relatar, a partir de meus estudos e organização de artigos para os diversos portais de notícias para os quais escrevi, como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Le Monde Diplomatique Brasil, Sul 21, Estado de Direito e Zero Hora dos anos 80 aos de 2020.
Escrevi ao longo dessa prática 24 livros, muitos deles de história, memória e análise social. Faço questão de dizer que eu sou uma pessoa comum. Tenho família como todo mundo: Denise, minha esposa e paciente socióloga; Eduardo, meu filho e competente advogado; e um cachorro. Vou ao mercado e escrevo quase todo o dia. Se eu posso, qualquer um pode. Aproveitei a pandemia do coronavírus e sistematizei minha obra, e destaco a reedição de Educação e Poder Legislativo, e de O Tribunal de Contas e a Educação. Além deles, estão ali A Impossibilidade do Real, sobre o pensamento de Jean Baudrillard, obra que teve mais de 39 mil downloads no site Overmundo, e O Olho de Deus, sobre reforma administrativa no serviço público, entre outros estudos sobre o parlamento. Fiz minha crítica à esquerda em A Corrosão do PT: o nascimento do antipetismo no RS e à direita em O êxtase neoliberal: a história recente da direita no Brasil, 2016-2020. Meu Tempos de Pandemia reuniu os escritos que publiquei entre março e dezembro de 2020 sobre a repercussão social do coronavírus e A incrível história do programa de governo que encolheu analisa os programas de governo de Sebastião Melo e seus opositores no segundo turno das eleições de 2016 e 2020. Minha grande obra foi também minha despedida do legislativo, a qual ocorreu por minha aposentadoria pela Câmara Municipal: o livro A Câmara na Cidade, uma homenagem a Sérgio da Costa Franco com mais de 300 imagens de Porto Alegre na passagem do século XIX para o XX, único no gênero. É claro que, aposentado, continuo escrevendo. Passe na minha página para dar uma olhada.
Escrever no Brasil é padecer no paraíso. Há inúmeras editoras, mas escritores anônimos como eu dificilmente publicam. Publicar é caro e, na maior parte das vezes, não dá retorno financeiro algum. Entre os gêneros, ficção ganha de disparada e não-ficção, como é o meu caso, tem destino certo nos balaios de saldos. Você tem uma certeza: não nasceu para ser um Paulo Coelho, é mais um intelectual local à procura de um lugar no árido mercado editorial. Na minha experiência, é possível sobreviver. Minha receita tem os seguintes ingredientes: autopublicação, autoedição, atendimento de exigências editoriais básicas (ficha catalográfica e ISBN) e autodivulgação. Tudo por conta própria. O segredo é escrever sempre.
Para concluir, creio que o que escrevi ao longo desses anos revela, em primeiro lugar, meu comprometimento com o pensamento que caracterizou minha trajetória intelectual e de minha geração. Explorar autores e temas foi a minha forma de trazer o conhecimento histórico ao presente. Em segundo lugar, o comprometimento da pesquisa com o ensino. Da graduação à pós-graduação, fiz minha formação sem abandonar o espaço de sala de aula como foco de trabalho e investigação. Em terceiro lugar, o comprometimento com um esforço interdisciplinar, com o contato com várias disciplinas, da arte à literatura e à psicanálise.
Este sou eu, mas também o espírito de minha geração. Esse espírito é como o do professor John Keating, do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), que nos diz que devemos estudar e pesquisar de um modo nada ortodoxo, que devemos fazer isso para preparar os jovens para enfrentar a opressão, seja a escolar ou do sistema, exatamente como Keating fazia na Academia Welton. Ele tinha uma grande esperança em seus alunos: ele não tinha medo de enfrentar os valores tradicionais e conservadores e eu acredito que não devemos ter medo de enfrentar o ultraneoliberalismo a partir da pesquisa e da educação. Temos que ter, como pesquisadores e professores, esperança de um mundo melhor. Ainda acredito que haja espaço para isso, mas eu não sei exatamente o que as novas gerações de historiadores e humanistas fazem para mudar o mundo, só posso dar o testemunho do que eu e a minha geração fizemos e ainda tentamos, mas temo que, pelas facilidades que o mundo virtual lhes oferece, elas percam muitas oportunidades de crescer que eu e minha geração tivemos. Por isso, cabe à minha geração deixar sua experiência registrada. É o que faço aqui.
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
Foto da Capa: Acervo do Autor.