Em Itaqui, no tempo dos trens, o viajante chegava de costas. Como a cidade era uma estação final do trajeto ferroviário, a composição devia fazer manobras e entrar no perímetro urbano, lentamente, de ré, pois Augusta ao contrário do trem, fugira de Itaqui rapidamente e disposta enfrentar o que vinha pela sua frente. Abandonando uma vida miserável e um marido bêbado e boçal, pelos trilhos do Maria-Fumaça, chegou e ficou em Santa Maria, juntando-se com um ferroviário que, além de muitas surras e complicações com a polícia, ainda lhe deu Filipa.
Também de frente e ligeira, agora com a filha no colo, reiniciou sua vida seguindo o roteiro do trem e de seu desconhecido destino. Augusta veio morar em Porto Alegre trazendo duas decisões: arranjar um trabalho decente e não ter mais homem nem filhos. Se tivesse a certeza de ter um menino, ainda poderia tentar, mas mulher dá muita preocupação para criar e sofre demais no casamento. Por isso, amarrou as trompas na Bemfam, conseguiu faxinas em várias casas de madames ricas e se dedicou a criar Filipa.
No barraco à beira do precipício no Morro da Cruz, todo o dia era aquela ladainha:
— Filha, vai estudar!
— Amanhã, mamãe…
Augusta dizia que os estudos eram necessários para se ter uma vida melhor e talvez a filha até pudesse ser doutora como as filhas das patroas, mas Filipa não queria saber de nada, era todas as noites bailão e bebedeira. Augusta chegou até comprar um Atlas que mostrava todos os países do mundo. Filipa mal olhava os mapas e com a capa dura.
Do livro como base, escrevia bilhetes para o namorado, um tipo notado pela sujeira e maus modos.
– Um dia eu fujo com ele se tu continuares a me encher o saco – dizia para a mãe.
Certa noite, Augusta descobriu um papelote dentro da bolsa da filha. O pó branco não deixava dúvidas. Esperou Filipa chegar e naquela madrugada a derrubou de tantas pancadas que lhe deu.
– Mãe, é hoje que vou embora – Filipa gritou e se fechou no quartinho dos fundos.
No dia seguinte, Augusta comentou com a vizinha.
– A falta que faz um homem em casa.
– Te cuida, que uma hora dessas ela vai mesmo fugir – avisou a vizinha,
– Ela nunca vai fazer essa bobagem porque gosta muito de mim.
– Gosta muito de ti, mas ninguém gosta de apanhar.
Filipa não se mandou como prometera, mas houve um domingo em que apareceu zonza de tanta droga e trazendo o namorado bêbado a tiracolo. Augusta, enfurecida, botou os dois para a rua a tapas.
– Não quero bêbados e maconheiros em minha casa.
Na manhã seguinte, ao acordar, Augusta encontrou um bilhete com a letra da filha:
– Mamãe, te amo muito, mas na aguento apanhar tanto. Vou embora com Zé Luis.
Augusta chorou como nunca. A filha desta vez tinha cumprido a promessa e agora nada poderia ser feito.
– Assim é a vida – dizia quando contava sua história para as patroas das casas onde fazia faxinas.
Um dia, vinda de São Paulo, recebeu uma carta com a letra da filha, agora mais caprichada. Zé Luis fora apagado numa briga com marginais da Cracolândia. Que Deus a perdoasse, mas até foi bom. Tinha que dar um duro danado para sustentar os dois e ainda apanhava como um cachorro sarnento. Mas agora sua vida andava melhorando. Já morava com Severino, um sergipano encontrado na estação de trem no dia em que ela e Zé Luis chegaram do sul. Fizeram amizade, há um ano eram vizinhos e, pra dizer a verdade, se namoravam já que Zé Luis não cumpria mais suas obrigações de casado. De madrugada, chegava sempre bêbado, me enchia de porradas, caía na cama e dormia como um porco. Tudo isso, Filipa contou na carta.
Augusta, na sua vidinha, quase não se preocupava mais com sua filha. Fazia tempo que não recebia mais cartas e pensava que, afinal, Filipa acertara com Severino. Até que num domingo, quando se preparava para ir ao culto na Assembleia de Deus, ouviu bater na porta. Era Filipa com uma criança pequena no colo.
– Estou de volta, mamãe…
Com o dinheirinho que conseguiu salvar, comprou uma passagem de trem de segunda classe e assim fugiu de Severino. Pois não é que depois de um ano vivendo juntos, o cabra-da-peste deu pra beber e desancá-la a pau todos os dias?
Agora, disposta a começar uma nova vida, voltou com duas decisões na cabeça: arranjar um trabalho decente e não ter mais homem nem filhos.
Diante de sua atual situação, derrotada, humilhada, voltava de costas como o trem de Itaqui, mas estava disposta a ir à luta.
– E a criança –perguntou Augusta com um olhar de esperança – é menino ou menina?
-Menina – informou Filipa, sem conseguir encarar sua mãe.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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