Amor, sexo e amizade: eis um tripé em que quase todo mundo se ampara para depois, de um ou de outro, cair, no mínimo, da própria altura. Queda que pode dar inveja à de Roma, à de Constantinopla e à idade de ouro do mundo grego, um mundo à parte na história de tudo e que segue vivo aqui, nesse Ocidente em que sobrevivemos, porque, além de fundador de nossa cultura, ele também foi o pai ou a mãe, não sejamos sexistas, do que chamamos de globalização, da primeira (eu adoro listar primeiras coisas, daqui a pouco falo sobre isso) chamada de ‘helenismo’. Eu, por exemplo, sofro de Helenismo até no nome. Ah, como assim, que conversa é essa, Helena? A que vem dos livros. Como diz o escritor Luiz Ruffato, de vez em quando, para acreditarem que somos inteligentes, temos de fazer uma citação que justifique nossas palavras, então, vamos a uma:
Irene Vallejo, em O Infinito em um Junco – A Invenção dos Livros no Mundo Antigo, falando sobre a Biblioteca de Alexandria, explica que ela não foi idealizada e construída apenas para ser um refúgio do passado e sua herança, mas também para ser a ponta de lança de uma sociedade globalizada em que costumes, crenças e formas de vida criariam raízes nos territórios conquistados por Alexandre, o da Macedônia. Esse Alexandre vale por muitos, não é por nada que há milhões de homens, Terra afora, carregando o seu nome. Esse Alexandre fundou pelo menos setenta cidades e desencadeou a corrida por livros que salvaria o planeta se acontecesse nestes nossos dias cheios de ex-leitores (sete milhões de brasileiros pararam de ler nos últimos quatro anos). Em sua época, não havia comércio que se comparasse ao de obras escritas. Na época de Alexandre, o mundo grego era a World Wide Web, a Internet, e pessoas morriam e matavam pelo que ele agitava. Não que eu concorde em morrer e matar por alguma coisa. Longe de mim. Sou pacífica, ainda que com inclinações espartanas.
Mas voltemos ao amor, ao sexo e à amizade ou a um deles. Provavelmente, os outros dois deixarei para falar em um segundo e terceiro textos, aqui na Sler (segue o instagram @sler_oficial), ou quarto ou, sabe-se lá que número, porque eu sou pulsional, como o sexo. Pelo jeito, ele já deixou os outros dois para trás. Se você, que me lê com boa vontade (obrigada!), pudesse votar em um dos três, qual seria? Se a sua natureza é como a minha, bastante ligada aos sentidos, inclusive ao sexo, nem precisa me responder. Ou precisa para apimentar a leitura. Sexo, para ir além do instinto, implica condimentos, uma lista de temperos (eu não disse que voltaria a falar sobre listas? Disse que falaria sobre listar primeiras coisas, Helena…). Sim, pois mudei de ideia. Quais, então? Na minha culinária não faltam desejo e erotismo. Erotismo gosto até por escrito. Só de ver a palavra, me inspiro. E por me inspirar, recorro ao Octavio Paz, um homem por quem eu teria caído de paixão, entre outros ‘ãos’, ao vivo e em cores, se eu o tivesse conhecido em carne, osso e ouvidos. Veja o que o Octavio disse (olha como estamos íntimos) em Um Mais Além Erótico: Sade.
“O homem se espelha na sexualidade. O erotismo é o reflexo do olhar humano no espelho da natureza. Assim, o que distingue o erotismo da sexualidade não é a complexidade, mas a distância. O homem se reflete na sexualidade, nela se banha, nela se funde e se separa. A sexualidade, porém, nunca olha o jogo erótico; ela o ilumina sem vê-lo. É uma luz cega. O casal está só, no meio dessa natureza que imita. O ato erótico é uma cerimônia que se realiza de costas para a sociedade e diante de uma natureza que jamais contempla a representação”.
E veja também o que disse o Nelson Rodrigues. E não venha me dizer que baixei o nível. Primeiro, porque você ainda não leu o trecho que selecionei; segundo, porque é mesquinho fazer julgamentos precipitados, e mesmo não precipitados; terceiro, porque é uma postura antipática. Eu não suporto gente antipática, elas são o meu filme de terror. Pedantes, empoladas, cabulosas (dei uma olhada no dicionário de sinônimos para aumentar a lista), elas me arrepiam a pele no mau sentido; e quarto, porque o Rodrigues, no O Óbvio Ululante, fez uma grande e criativa lista de crônicas e de parágrafos. Um dia, em breve, também escreverei um texto enumerando um por um.
“O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e, como tal, envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo.”
E aqui, pensando um pouco sobre a obra rodrigueana, me pergunto sobre o que Rodrigues estava a falar? A que tipo ou tipos de falsificação ele se referia? As conduzidas por uma sociedade repressora da atração sexual, supermascarada, avessa ao sexo no discurso e entregue a ele na clandestinidade, colocadora do sexo no território dos crimes e pecados, daqueles em que o padre manda o pecador se ajoelhar e repetir milhões de orações pelo resto da vida para escapar do inferno? No livro História do Amor no Ocidente, Denis de Rougemont discorre sobre a repercussão do cristianismo em nossos costumes e em nossas mentes, de nós todos sempre sendo observados e julgados por Deus e seus representantes imbuídos de sentenciar, ainda com maior severidade, os atos e as vontades das mulheres.
No século XII (e isso não faz tanto tempo assim, você só existe por causa de alguém que viveu nele), é bom lembrar, a Igreja Católica admitia que as mulheres acusadas de irem para a cama com um homem que não o senhor seu marido fossem submetidas a uma prova irrefutável de inocência. A verdade surgiria assim que elas agarrassem, com uma mão, uma barra de ferro incandescente. As mentirosas e culpadas queimariam. As inocentes e puras como Isolda, a do Tristão, sairiam intactas. Tristão e Isolda nunca existiram. Não passam de lenda, de uma narrativa, e narrativas, é claro, aceitam absurdos. E o que é pior: a realidade também. Os índices de feminicídio, no Brasil, que o digam.
Em 2024, de acordo com os dados do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), foram registrados 1.450 feminicídios. Os motivos alegados pelos agressores são sempre os mesmos: o sentimento de rejeição, o ciúme e a posse sobre a mulher, principalmente, pelo seu corpo. Alguns homens não toleram nem a hipótese de que o que entendem como sendo a sua fêmea toque e se deixe tocar por um outro ou outros e que isso proporcione prazer a ela. Sexo, quando consensual, provoca a liberação de vários hormônios, incluindo a ocitocina (o hormônio do amor), a dopamina, a serotonina e endorfinas. O corpo, à sua maneira, é uma forma de consciência e de alegria. “O poder requer corpos tristes”, disse o filósofo Gilles Deleuze. Mas a vida, a gente sabe, que não.
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Foto da Capa: Gerada por IA.