“De fato, é evidente que o homem que tem medo, tem medo de alguma coisa.
Mesmo se é uma daquelas angústias indefinidas que sentimos na escuridão,
numa passagem sinistra e deserta etc., é ainda de certos aspectos da noite, do mundo, que temos medo.”
Jean-Paul Sartre
Levamos uns dias para encontrar o código do cadeado das bicicletas – o banal 00000 – daquela casa alugada. A essa altura, estava acumulado o desejo de pedalar e claro que ele escorreria em excesso. A ideia era ir até o Starbucks, eu para ler, a filha para estudar. O acesso principal pela Bear Avenue seria mais direto e rápido, mas perigoso por causa dos carros velozes zunindo perto dos ciclistas. A filha buscou no Waze um que levaria o dobro do tempo, mas era para ser mais seguro. No meio dele, já longe do asfalto e na trilha muito pedregosa, fomos advertidos por um avô que treinava o neto para uma corrida de kart, em um areão costeando a trilha. Segundo ele, teríamos de passar na frente de uma propriedade privada, onde uma louca deixava soltos dois cães ferozes, só esperando pela oportunidade de rasgar as calças dos caminhantes. Era verão, a filha estava de short, e eu de bermuda. O Waze deu uma terceira alternativa que era subir um morro que, lógico, precisava depois ser descido. O triplo do tempo, ou seja, hora e meia, com uma beleza indescritível em sua vegetação de palmeiras, curvas serpenteadas e casas rústicas. A limonada do Starbucks foi a melhor de todos os tempos, e a volta, é claro, foi pela Bear Avenue. Ou avenida do Urso, naquela localidade que se chamava Big Bear Lake ou o lago do grande urso. A volta era para ser mais rápida e a ciclovia costeava o lago aceso pelo pôr do sol. Era outra beleza indescritível pedalar no vento daquela hora, mas a ciclovia acabou e tinha muito asfalto para subir, em meio aos carros velozes. O Waze da filha apontou para uma trilha que atalharia o caminho, afastaria dos carros e pouparia subidas. Fomos por ela, pensando que era curta, mas não era. Bifurcava e bifurcava e bifurcava com tantas pedras no chão irregular que já não era possível pedalar. Empurrávamos as bicicletas, orientados pelo Waze numa das mãos da filha. Só que lá pelas tantas, o aplicativo mandava se embrenhar no mato; caso contrário, precisava seguir uma outra trilha que parecia se afastar cada vez mais da civilização de Big Bear Lake. Estávamos definitivamente perdidos e o sol não demoraria a desaparecer. Como seguir no escuro? Como chamar por socorro com aquela internet instável? O calor havia desaparecido e as noites eram muito frias por lá. Foi quando, de repente, ele surgiu. Do mato, mas se aproximando da trilha. Cada vez mais. Não parecia tão grande, embora o pavor discordasse disso. E, finalmente, entendi por que aquele recanto lindo e afastado da Califórnia se chamava Big Bear Lake. Minha cabeça, pouco antes, andava às voltas com tutoriais imaginários de como sobreviver na floresta, o que fazer para se aquecer na madrugada, onde dormir, o que beber, o que comer e quantos dias poderíamos sobreviver sem sermos encontrados. Precisei mudar o registro e acionar o tutorial antiursos. A única coisa que lembrava foi de um conselho do Peter, caseiro da Ledig House, o Clube de Escritores, onde passei uma temporada, nos anos 90. Eu fazia longas caminhadas à beira do rio Hudson e os ursos nunca vieram. Mas, naquela década, o conselho era se fingir de morto. Não, eu não poderia me fingir de morto. Nem a filha. Nem um confiar que o outro pudesse fazer um morto verossímil, depois de termos sido flagrados ainda vivos. O urso tinha um olhar assustador. Olhava para a mochila e decidi entregá-la, jogando-a sem muito alarde na sua direção. Depois me arrependi, pois não havia comida e ele podia se revoltar com aquela falsa promessa. Ele não deu muita bola e continuou se aproximando. Parecia testar o meu medo e o meu medo era enorme. Temia por mim, mas, naquele momento, que parecia finalmente o grande desafio de minha vida, senti na carne o que era ser um pai. Um pai era aquele que temia mais pela vida da filha do que pela sua própria. Pedi que ela fosse para trás, ela não gritava, estava muda e pálida como eu devia estar. Então, postei a bicicleta à minha frente, ambos na frente da filha. Nessa hora, lembrei-me do Leonardo DiCaprio e fiz um devaneio em que era estropiado pelo urso, e a filha havia conseguido fugir. Depois, olhei bem nos olhos dele e fiz da bicicleta uma espécie de escudo ou arma que eu levantava e abaixava, ao mesmo tempo em que dizia com uma firmeza sem grito que ele precisava ir embora. Deve ter durado um minuto a reação do urso. Ele olhava para mim, que não parava de bradar, ele olhava para a bicicleta subindo e descendo, e parecia não entender. Passado o minuto que pareceu um ano, o urso deve ter entendido: deu meia volta e desapareceu na mata. Naquela hora, foi como se abrisse uma tampa dentro de mim. Entendi que os raros momentos do Waze ativo apontavam para sair da trilha pelo lado direito e enfrentar um pouco de mata na direção dos barulhos distantes dos carros. Foi o que fiz, sabendo que corria o risco de reencontrar o urso. Mas, agora, eu já não o temia. Também me vieram à mente todas as brigas em que me envolvi, quando garoto. Não foram muitas, foram seis, em quinze anos, incluindo a escola infantil, depois nunca mais briguei, ao menos dessa forma. Sempre as evitei ao máximo e nunca esbanjei coragem nos embates físicos. Mas tive os seis inevitáveis e, nessa hora, repassei especialmente dois em que levei pancada por ter sido pouco firme com o oponente, além de um sétimo embate que evitei, mas depois me arrependi. Os outros quatro foram equilibrados com pernadas e braçadas de um lado para o outro, que ali todos eram meninos e ninguém, profissional. Agora, depois do urso, eu faria diferente e tinha a sensação de que nunca mais levaria porrada, se fosse preciso brigar, ou melhor ainda, teria coragem de sobra para fazer o outro recuar como um urso. Foram uns quinze minutos de mato, com o barulho dos carros aumentando. Depois de subir uma encosta muito vertical, a chegada ao asfalto foi como adentrar o paraíso. Estávamos quietos ainda e levaríamos muito tempo para falar do episódio. Encontramos um sujeito chamado Gary que conversou com a gente como se há pouco tempo não estivéssemos perdidos e acabado de encontrar um urso. Ele ofereceu água a “quem devia ter sede”, enquanto contava dos seus campings pela Califórnia, com a mulher e os dois cachorros. Não mencionamos nada do ocorrido.
Eu acho que pela primeira vez na minha vida, depois de muito tempo, eu adormeci sem nenhum medo. A vida parecia um lago tranquilo à espera do pôr do sol e o final de seu dia. Isso evocava a morte, mas a morte ali não era mais assustadora. Sentia-me como se pudesse enfrentar qualquer obstáculo de coisa ou pessoa que aparecesse à minha frente.
No dia seguinte, porém, já não era bem assim. E, na minha caminhada matinal pelas ruas estreitas de Big Bear Lake, quando o cachorro da casa vizinha me olhou com aquela cara de urso assustador, eu não o encarei e tratei de desviar a direção do meu caminho.
Foto da Capa: Big Bear Lake / Divulgação
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