A sala mais bonita da casa de meus avós estava sempre vazia. Achava esquisito que, depois dos longos almoços, nós nos amontoássemos na sala da TV. Queria fazer o meu estar na sala bonita. Mesmo criança percebia que a sala da TV era um improviso; a verdade é que tinha o maior jeitão de quarto! Apesar dos sofás e estantes, ela não era aberta e luminosa o suficiente para ser uma sala. A outra, decorada e inutilizada, essa sim! Uma digna sala de estar. Porém, lá nunca estávamos.
E nem bem chegávamos e passávamos ao largo daquela belezura de espaço que se abria sobre meu ombro direito. Cruzávamos a casa por outra sala – esta ao menos servia de passagem –, pois nosso destino era além. Íamos até o pátio e, lá no fim, nos reuníamos onde ficava a churrasqueira. Lá também ficava um quarto de verdade onde meus dois tios adultos – residentes e remanescentes – ensaiavam a saída de casa.
A sala bonita guardava todos os bibelôs da vó, as lembranças de viagem e os prêmios que meu avô eventualmente amealhava de sua atividade jornalística. Ficava tudo lá. A mãe sempre lembrava que a vó não gostava que mexessem naquelas coisas… Ainda assim – numa rara vez em que as conversas adultas me aborreceram – eu subi. Tinha um jogo armado em mente: examinar cada objeto e colocá-lo exatamente no mesmo lugar. Por certo infalível. Se às vezes funcionava com meu irmão mais velho, muito mais detalhista, por que não com as coisas da vó?
Brincar com argila sempre me encantou, embora não tenha tido prática suficiente para aperfeiçoar a mão. Mas era incrível que alguém houvesse conseguido fazer um velhinho, todo enrugado, de algo que só podia ser argila, apesar do brilho que imagino que era verniz. A argila marrom, a nossa cor! Me lembro de haver perguntado para o vô: parece que aquele velhinho vinha do Alagoas. Guriazinha do Sul, sabia “de mapa” o quão longe era o tal Alagoas e, então, achava incrível ter ali aquele velhinho, tão perfeitinho e tão viajado.
Eu precisava ver com as mãos! Tocar aquelas reentrâncias, sentir o movimento e o gesto de quem fez aquela lindeza. Ainda lembro da textura, de um granulado muito sutil… Desfrutei por alguns segundos daquele prazer táctil e proibido. Logo em seguida – por descuido, lapso ou porque, de uma maneira torta, queria dividir essa alegria sensorial com o mundo – acabei deixando o velhinho cair. Lascado, ele perdeu um bom pedaço.
Gelei! Sempre muito acarinhada pelo avô, a repressão dele era das que mais machucava. O que fazer? Não podia estragar o almoço… Eu precisava ganhar tempo. Os adultos continuavam lá embaixo, com cerveja e conversa solta. Agi. Fui até a área de serviço e peguei jornais. Voltei e enrolei o velhinho como se fossem meia dúzia de ovos, agora sim com todo o cuidado. O plano era deixá-lo embaixo da estante, escondido, e, na hora de ir embora, levá-lo comigo para dar um jeito de consertar. Naquela época, “dar um jeito” era a união da maior boa vontade com a menor ideia do que fazer.
Desci. Nervosa e com a barriga querendo soltar o almoço cedo demais. Como iria levar o velhinho? Não estava de mochila e não poderia colocá-lo na bolsa de minha mãe – aliás, mais um lugar a não mexer. O tempo passou e decidi deixá-lo lá. Iria ganhar tempo novamente para explicar o que aconteceu. Pediria para usar o telefone e diria aos avós, investida da autoridade de meus 9 anos, que o velhinho seria consertado e devolvido em perfeito estado.
Devo estar ganhando tempo até hoje, pois não recordo o desenlace. Minha memória salta para outro final de semana qualquer: eu perdoada, o velhinho remendado na sala e todos os meus adultos reconstituindo minha aventura como uma anedota familiar.
* Uma imprecisa memória dedicada à memória de meus avós.
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Foto da Capa: Freepik