Ele movia os lábios, mexia a boca, articulava palavras. Às vezes parecia manifestar sentimentos. Mas sabíamos que um ventríloquo comandava o show.
Tempos difíceis. Custo a adormecer, tento contar carneiros pulando a cerca. No fio do alambrado pousam lembranças e reflexões. Há uma trégua do ruído de helicópteros e sirenes. Também a chuva cessa. O frio ostenta um sorriso dúbio.
Em meio a tantas recordações, a da visita daquele artista ao Grupo Escolar Rodolfo von Ihering, na cidade de Taquara, onde cresci. Versátil, o ventríloquo apresentaria diferentes estilos que compõem a sua arte. Desde o mais comum, aquele que o sujeito se coloca atrás do boneco e o manipula, enquanto fala, até o da mão dentro de um fantoche, uma marionete que é movimentada diretamente pelo artista. Outro, com projeção de sombras falantes em uma tela, como se fosse a dublagem de um filme, mas não lembro se foi o caso.
Antes da apresentação, grande expectativa e todas as informações para o aprendizado dos alunos. A ventriloquia é uma arte de milênios, possivelmente originária do Egito. Utilizada por gregos em rituais divinatórios, ganhou popularidade em espetáculos teatrais e circenses na Roma Antiga. Associada à bruxaria e ao ocultismo na Idade Média, voltou a ser aceita como entretenimento no século XVIII.
Atualmente há outros truques também, mais modernos e que estamos vendo a todo momento nas mídias e telejornais e que serão ainda mais exitosos com o poder da inteligência artificial. Cria-se uma ilusão, a voz parece vir do boneco, mas a fala, geralmente sedutora, cativante, persuasiva, é de alguém ou de um grupo, com interesses específicos. O resultado é muitas vezes avassalador. Claro que há fantoches ridículos também.
Essa memória me assalta, quando se avolumam os discursos performáticos, em meio às notícias da enchente. Tragédia agravada pelo negacionismo e pelo descaso em medidas preventivas. Revela-se agora a evidente negligência e falta de manutenção em sistemas bem construídos.
Planejamento Urbano, Educação e Saúde exigem responsabilidade, trabalho sério, administração com conhecimento, ciência e técnica; e que não vise lucro como a principal e, por vezes única, meta. São atribuições que, quem faz a verdadeira política, deveria atender em resposta à população. Há serviços que não podem ser rifados, doados pelos gestores, entregues de mão beijada. Pode soar ingênuo, utópico, mas isentar-se dessa obrigação impede a possibilidade de desenvolvimento harmônico e justiça social. E o que esperar da necessária atenção à causa ambiental, fundamental para a sobrevivência, humana inclusive?
Tenho muito orgulho de ter estudado numa escola pública. Aprendi muito, apesar de que isso se deu quando da implantação de outra (des)reforma de ensino. Uma matéria curricular, em especial, Organização Social e Política Brasileira, consistia também em exemplo de ventriloquia. Servia mais ao silêncio conveniente do que a indagação criativa e libertadora do conhecimento.
Sonho agora com Dona Concha, a merendeira da escola, famosa por suas sopas que equivaliam a poções mágicas.
Volto ao Grupo Escolar Rodolfo von Ihering, onde fiz o jardim de infância e as cinco séries primárias. Tenho certeza que minhas professoras saberão responder a uma dúvida que tem me instigado: – Não seria isso um verdadeiro paradoxo, alguém almejar ser Estadista e lutar por um Estado Mínimo?
Na minúscula cozinha embaixo da escada, Dona Concha prepara um café para o ventríloquo. Ela percebe meu abatimento e oferece: – Guri, também aceita um café? Leite? – Não, muito obrigado! – a gentileza dela me comove e emendo – Eu aceito um cafezinho. – Açúcar? Mel ou melado? – ela aponta com o dedo do meio em direção aos potes sobre a mesa. – Açúcar, uma colherinha! – agradeço – Não que seja meu costume adoçar o café, mas a situação anda amarga demais.
O ventríloquo aparece na porta, carrega no colo o boneco vestido com um fraque e gravata borboleta, parece muito com alguma figura que conheço. Ele cumprimenta Dona Concha e, quando me vê, diz ao boneco: – Sir, apresente-se e diga algo inteligente ao rapazinho!
– Olá, sou Sir Winston Leonard Spencer Churchill. O boneco me olha firmemente e complementa, em tom solene: – Vou lhe dizer algo muito importante: o político se torna um estadista quando começa a pensar nas próximas gerações e não nas próximas eleições.
Dona Concha larga o pano de prato sobre a pia. Bate palmas. Eu a acompanho.
Foto da Capa: Unsplash
Mais textos de Fernando Neubarth: Leia Aqui.