Aqui em casa temos uma espada de São Jorge. Plantófiles de plantão (perdão pelo falso pleonasmo!) sabem que não me refiro a nenhuma sorte de catana consagrada ao santo, mas a essa espécie vegetal tão comum e difundida, a sansevieria trifasciata. Planta das mais aguerridas e que, como poucas, aguenta o tranco. Tal característica a faz amiga dos dedos menos verdes, como um dia foi o meu.
A verdade é que as espadas de São Jorge costumam ser queridinhas por requererem pouco de seus tutores: terra, um pouco de água e um pouco de luz. Popularíssimas, a elas se atribuem propriedades tóxicas, místicas e ornamentais. Desse modo, estão presentes dos lares mais humildes aos mais sofisticados, passando incólumes e jubilosas por shoppings, estradas e avarandados. Ainda que não me considere exatamente uma mãe de plantas ou plantlover, é bem verdade que, após a pandemia, elas se mantiveram em minha vida, fazendo parte de meus trânsitos e hábitos. Guria de apartamento que fui, se antes somente conhecia o sucesso com as violetas, passei a experimentar a alegria do convívio com outras espécies, cada uma com suas manhas e manias. Como tantas pessoas, o recente período de isolamento social imposto consolidou meu encantamento com esses seres tão à medida para o cultivo da introspecção. Confesso que não tenho como hábito a controversa prosa com as plantas. Prefiro comentar apenas o estritamente necessário que, em meu caso, é bem restrito mesmo. Ainda assim, é bem verdade que elas cada vez mais têm me contado coisas. E, antes que se pense em alucinação auditiva, antecipo que se trata do prazer de observar suas formas, propriedades, saber sobre seu cultivo e, sobretudo, sua história de relação com os povos de ontem e de agora.
Sempre me fascinou o conhecimento que as mais antigas têm sobre as ervas. Recordo com carinho a lembrança de minha avó ralando noz moscada para aliviar as minhas primeiras cólicas menstruais. Então, certamente o chá foi um dos meus primeiros conselheiros e terapeutas. Aí também reside uma comunicação interessante com as plantas que vai muito além da nutrição. Nesse sentido, foi um caminho natural que a relação com as plantas passasse pelos seus nomes, já que estes terminam indicando coisas, muitas vezes, curiosas, como a venenosa comigo-ninguém-pode. No Brasil, a espada de São Jorge é parte dos cultos afro-brasileiros quando, muitas vezes, se sincretiza São Jorge com Ogum. Aqui na Argentina a nossa espada de São Jorge costuma ser mais conhecida como lengua de suegra [língua de sogra]. Penso na interação possível entre os objetos espada e língua. É certo que ambos podem ser compridos e cortantes, mas, neste caso, a língua afiada não é a da sogra, senão de quem batizou a planta dessa forma.
É um clássico do machismo estrutural inculcar insultos às mulheres das formas mais insidiosas possíveis. A conhecida má relação com as sogras é apenas mais um exemplo, deixando aos sogros a insipidez ou o papel de queridinhos. Noras, genros e, muitas vezes, as próprias sogras perpetuam a má fama, deixando na cultura esse alerta de predisposição à inimizade. Em um de seus estudos culturais mais conhecidos, Totem e Tabú, Freud se deu o trabalho de repassar essa histórica indisposição com a sogra, pensada, naquele caso, a partir do tabu, como uma sorte de extensão do interdito do incesto. Em relação às noras é bastante conhecida a rivalidade que, em geral, está posta quando uma das duas não está cômoda em seu lugar de direito. No fundo, trata-se de maneiras de legislar sobre corpos e mentes, em uma disputa de poder que serve ao patriarcado e que mantêm o homem cis e hétero no centro do comando. Enquanto uma nora e uma sogra se digladiam, é mais provável que um homem mantenha uma relação abusiva com ao menos uma das duas.
Aqui valeria a pena repensar a sororidade de ocasião. Como o fez, no final dos anos 1970, a estadunidense Audre Lorde – poeta negra, lésbica, mãe e feminista – ao indagar mulheres brancas em um evento: “Como vocês lidam com o fato de que as mulheres que limpam as suas casas e cuidam dos seus filhos enquanto vocês vão a conferências sobre teoria feminista são, em sua maioria, mulheres pobres e de cor?”. Parece atual que a sororidade seja em parte dos casos seletiva, correndo por fora dos círculos íntimos. Esperemos que isto mude e que possamos plantar mais espadas de Santa Bárbara, quer dizer, de Iansã.