Desde a enchente, há alguma coisa entalada no meu peito, uma coisa dura, que não dissolve. Por alguns dias sinto um alívio, mas logo essa coisa volta a esmagar o meu coração. Quase nunca o que nos machuca se deve a um único motivo. Em geral, é uma soma que vai avolumando e, num momento específico, a gota d’água faz transbordar o copo. Nesse caso, foi uma gota d’água assaz gorda, de enxurrada, que não só transbordou como virou o copo inteiro. Acho que a enchente nos arrancou da distopia das ficções para a realidade devastadora – uma bofetada sonora: “Acorde!” Tenho uma sensação, agora, de viver na iminência de um desastre. Pior que não é exatamente novidade, basta pensar nas guerras e em como as pessoas viveram – e vivem – sob a ameaça de bombardeios, de violência e destruição, de morte, de desastres sempre iminentes. É tanto sofrimento por toda parte; como seguimos em frente? Acho que somos mesmo mais resistentes que as baratas, como disse a escritora Rosa Montero, em recente entrevista ao Roda Viva. Lembrei da nossa Clarice Lispector, que não deixou por menos ao fazer sua personagem, no romance A paixão segundo G.H., estraçalhar e devorar uma barata no confronto com os seus sentimentos, no ser consigo mesma e com o mundo. A bem de não esmagar uma barata entre os dentes, me jogo na estrada para me haver comigo mesma.
Assim, domingo retrasado, subi a Serra Gaúcha pela Rota Romântica. O tempo estava péssimo: céu fechado, chuva e neblina e seria mais seguro pela BR 239, com suas faixas duplicadas. Mas é necessário muito verde e beleza para acalmar a alma. É preciso deslizar no meio da vegetação, dos plátanos, mesmo pelados, mas não menos magníficos com seus longos galhos, íntimos das nuvens. Em vários trechos, a serração se tornou tão densa que não havia visão alguma além das bordas do meu pequeno jipe. Eu flutuava sozinha na estrada gasosa, imersa em outra dimensão – quantos mundos há neste mundo? Tão belos. A dor foi amainando e cheguei a Canela mais em paz. Na madrugada de segunda, no entanto, aquela coisa voltou a pressionar o meu peito cruelmente. É quando os exercícios de respiração ajudam: inspirar contando até cinco (calma), expirar contando até cinco de novo (relaxa); também a poesia de Elizabeth Bishop* e, confesso, pois detesto tomar remédio, uma dipirona 500mg para a cabeça pesada. Pela manhã, estava pronta para me jogar novamente na estrada e, por sorte, o tempo abriu. Saí de Canela sabendo que precisava de natureza na veia, o que fui buscar nos jardins do Mátria, em São Francisco de Paula. Meu amigo de Canela, Lucio Haeser, sabe que não morro de amores por dirigir – ele adora – e se prontificou a me levar, o que foi ótimo, pois gostamos de viajar juntos.
Há meses venho pensando sobre jardins – estou desenvolvendo um pouco do tema no meu TCC da pós-graduação em Ciências Humanas – e senti que esse mergulho no Mátria funcionaria como bálsamo. A filosofia nasceu da observação da natureza e Aristóteles defendia que o pensamento só pode se desenvolver de maneira plena e saudável em espaços amplos, verdes, naturais. Nossa mente fica embotada no meio do concreto. E o crescimento caótico das cidades já afeta gravemente a nossa saúde mental e física. Transtornos de humor e ansiedade são mais prevalentes nas cidades e depressão e esquizofrenia são fortemente aumentadas em pessoas nascidas e criadas nas cidades. Estudos dos processos neurais que mediam essas associações demonstram que uma estrutura chave do cérebro para a emoção negativa, a amígdala, foi mais ativa em habitantes da cidade em situações de estresse e uma área regulatória do cérebro, o córtex cingulado, mais ativa nas pessoas nascidas nas cidades.** E ainda os notórios problemas da poluição atmosférica, que origina doenças cardiovasculares e respiratórias e a carência de saneamento, especialmente em periferias, que está reeditando doenças virais. Aí tivemos essa enchente no RS, que nos deixou com água até o pescoço dentro das cidades, pilhas de lixo gigantescas e tóxicas, com destinos incertos e pessoas ainda lutando para refazer suas vidas – não é preciso dizer mais nada…
Mas precisamos dizer, sim! Muita coisa tem que ser dita. Até 2050, estima-se que 2/3 da população mundial viverá nas cidades. Nos centros urbanos com mais de 100 mil habitantes, a média de esperança de vida decresce 15 meses para pessoas na faixa dos 30 anos, devido à presença constante de partículas finas no ar. Em Paris, a média anual está cinco vezes acima do aceitável, sendo a poluição a terceira causa de morte na França, atrás apenas do álcool e do tabaco (pesquisa do governo francês). Em São Paulo, estima-se que os moradores vivam, em média, 18 meses a menos do que pessoas em cidades com o ar mais limpo (pesquisa da Faculdade de Medicina da USP). É motivo suficiente para investir pesado em parques, jardins, na natureza dentro das cidades, caso contrário vamos adoecer ainda mais seriamente. Estudos apontam que até uma varanda de apartamento ajardinada já conta como diferencial qualitativo para nossa saúde. E não há mais dúvidas, se trata também de uma questão de sobrevivência. A partir da urgência climática, já está posto que nossas cidades precisam ser redesenhadas urgente e radicalmente – na coluna passada de Marco Moraes há inúmeros dados muito importantes que você pode conferir e sugestões.
Vou continuar aqui na questão sensorial. Caminhamos por quatro horas dentro do Mátria e aquela coisa sólida no meu peito se dissolveu como num passe de mágica. Cada jardim ali, cada recanto, nos faz reconectar a alma ao universo. E o parque também foi afetado pelos inúmeros dias de chuva torrencial, sem sol. Desde a inauguração, há dois anos, já houve situações de clima severo, mas o Mátria nunca fechara, o que a administração decidiu dessa vez devido ao movimento reduzido a quase zero na região e para evitar riscos aos colaboradores nos piores dias. Nas áreas mais úmidas, a equipe precisou trocar as mudas até cinco vezes, o que tardou a florada de inverno. Mas as flores voltaram e o Mátria cintila novamente. Centenas de ramalhetes de amor-perfeito com suas cores vibrantes. Um mar de alecrim ondulante, na altura do nosso peito, abarrotado de florezinhas roxas, atraindo as abelhas tão sumidas de nosso cotidiano, o que me alegrou especialmente. Os arbustos, a mata nativa e as árvores frutíferas já revigorados. A grama outra vez verde e fofa como um tapete felpudo. É assim na natureza, tudo se recompõe e se compensa. Se as flores não estão em sua exuberância neste momento – no verão, o parque explode com mais de 300 espécies, sendo os túneis de rosas um espetáculo indescritível –, a paisagem como um todo se encarrega do encantamento. A localização também contribui para expandir nossa percepção, pois estamos na vastidão natural e belíssima dos Campos de Cima da Serra, com suas coxilhas e pedras milenares. A cidade mais próxima fica a 11km, a bucólica São Chico, ou seja, não sofremos influência urbana incisiva – porque, sim, mesmo nos parques mais verdes das cidades, a energia do concreto ainda nos atravessa. Ali no Mátria, somos nós e os deuses. O aroma é delicado, o som é melódico e o ar é tão leve e puro que só queremos dele respirar. Nas próximas colunas, falaremos mais do Mátria e deste assunto imenso e admirável dos jardins. A natureza sempre foi o meu remédio e continuará a ser, apesar da – ou ainda mais por causa da – enchente.
*A arte de perder
A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Elizabeth Bishop
(tradução de Paulo Henriques Britto).
**Social neuroscience: Stress and the city, Daniel P. Kennedy & Ralph Adolphs.
Estudo com alemães saudáveis identifica, através de ressonância magnética funcional, mecanismos potenciais que relacionam o ambiente social e a doença mental e podem contribuir para o planejamento de um ambiente urbano mais saudável.
- City living and urban upbringing affect neural social stress processing in humans, Florian Lederbogen e outros.
Fotos: Acervo da Autora.
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