Se me fosse dado mudar uma única regra no jogo de futebol, eu não mexeria na questão do impedimento. Faz sentido punir quem não vem buscar o jogo e espera passivamente algum benefício disso; daí a justa imagem da famigerada banheira. Tampouco mudaria a controversa bola na mão, a mão que fique encolhida neste jogo que prioriza a arte dos pés. Não mudaria o tempo de jogo, suficiente para os craques mostrarem o que fazem, nem acréscimos, nem pênaltis, nem número de substituições. Tudo isso parece suficientemente justo, e que assim seja.
Se me fosse dado mudar uma única regra no jogo de futebol, eu mudaria a autoria do gol. Tenho evidências a meu favor sobre tais créditos e cito ao léu dois exemplos robustos. Porque, na final da Copa de Setenta, contra a Itália, o Rei Pelé foi a Majestade responsável pelo gol do Carlos Alberto. Teve seus méritos o Capitão, mas a grande arte aconteceu antes da sua conclusão, graças ao desenvolvimento do Pelé. E, recentemente, Vinicius Júnior fez quase um gol inteiro na final do Mundial de Clubes. Mbappé, quase caindo, só deu o toque final. O francês nem precisou estar de pé, enquanto o brasileiro precisou angariar uma série de ângulos para o drible e o passe.
Entre uma final e outra, há o registro de uma imensa parcela de gols com justa autoria de quem, injustamente, não levou a autoria. Chamar de assistência é pouco, quando não injusta, como uma apropriação quase indébita ou um roubo parcial de direitos autorais. Qual o sentido de imortalizar quem fez o último toque, só por havê-lo feito depois de um ou muitos se matarem para que a coisa acontecesse, incluindo volantes e zagueiros que, minutos antes, desarmaram o adversário… Quem suou mais? Criou mais? Que não se meça participação nem se erga hierarquia, mas qual o sentido de deixar a assinatura nas letras de um só?
E, por ser o futebol metáfora ajustada da vida, o ajuste da regra ganha, a meu ver, ainda mais importância. Basta olhar qualquer realização individual ou coletiva e veremos que, no fundo, não há realização individual; ao fim e ao cabo, é tudo coletivo. Olhando melhor, sempre haverá alguém por detrás. É focar a imagem para ver que outro, invariavelmente, chegou antes. Não haveria Drummond sem Mario de Andrade, nem Pelé sem Garrincha, e assim por diante para trás, na metáfora do futebol, da literatura e da vida em si.
Não se trata de dever, ninguém deve. Tua é a conquista, seja em que âmbito ela tenha sido. Podes erguer a mão, pular com o punho fechado, dar voltinhas em torno de si mesmo ou da torcida, bendizer-se baixinho por dentro, ou mesmo agradecer abertamente aos céus. Só não esqueças que o teu mérito também pode ser nosso, e mesmo deles, presentes ou não naquela hora. E que, nos céus, repousa a multidão anônima, invisível, saudada por um bando de fantasmas, e comemorando também.
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Foto da Capa: La Liga