O texto abaixo possui certa liberdade na escrita, o que se reflete também na utilização de alguns conceitos. O que tenciono fazer é, acima de tudo, não me apegar às palavras, nem aos seus significados mais estritos. Penso que arejar os vocábulos é também arejar, simultaneamente, o nosso pensar. De todo modo, as terminologias utilizadas correspondem também às suas ideias originais, o que, nesse caso, denota o rigor com o qual me atenho ao tema.
Adorno e Horkheimer extraem a matriz do Esclarecimento da Odisseia, de Homero. O personagem principal é Odisseu (nome grego), mais conhecido por seu nome latino: Ulisses. Logo, Odisseia significa “as aventuras de Odisseu”. Homero (cujo nome significa “refém” em grego) é um autor cuja existência é incerta; estima-se, contudo, que tenha vivido no século VIII a.C.
O mito de Odisseu, presente na Odisseia de Homero, serve como metáfora perfeita para Adorno e Horkheimer. Ele reúne os elementos do mito, da dominação e do trabalho. Seu objetivo é compreender a submissão dos trabalhadores e da classe burguesa.
É importante salientar a divisão do trabalho: racional e físico. Ou seja, a partir da dominação, compreende-se que o dominador busca criar sua própria felicidade, afastando-se daquilo que não deseja enfrentar – tarefa deixada aos trabalhadores (os dominados).
Não podemos esquecer que a palavra “trabalho” tem origem no termo tripalium, um instrumento de tortura, revelando assim seu caráter forçoso e gerador de angústia. Outro ponto importante é que a dominação de outros seres, especialmente por meio do escravismo, tem como objetivo livrar os sujeitos dominadores do labor, visto inicialmente como uma condição indigna. Essa concepção é observada na Grécia, em Roma e em outros contextos históricos e sociais de caráter escravista.
No mito supracitado, Odisseu precisa atravessar com sua embarcação um trecho assaz perigoso. Neste trecho, o possível encontro com as sereias e seus cantos representa um perigo mortal por sua capacidade de sedução, embora ele também represente deleite e beleza. Levando isto em consideração, Odisseu cria um estratagema: coloca cera nos ouvidos da tripulação enquanto se amarra ao mastro, disposto a experimentar o prazer sem correr risco de vida.
Esse mito representa bem as relações entre dominados e dominadores (não é por acaso a sua utilização por Adorno e Horkheimer). Enquanto os trabalhadores constroem o mundo, os capitalistas desfrutam dos prazeres do mundo. O mito simboliza também a separação entre o artístico e o trabalho manual, entre o trabalho espiritual e o trabalho sob a égide do capital.
O trabalho dos remadores serve apenas a um fim prático — são vistos como meios, ferramentas para um objetivo definido, guiado pela razão subjetiva, neste caso voltada à autoconservação. Eles não podem se distrair ou fruir da vida; sua função é claramente demarcada – eles precisam garantir a manutenção do mundo material, e nesse caso também, a manutenção do seu senhor.
De modo análogo, os remadores também representam o caráter da dominação que recai sobre os trabalhadores, que devem manter a civilização em funcionamento, enquanto seu chefe (Odisseu) pode “regredir”[1]. Eles são apenas instrumentos para alcançar um objetivo. Desde cedo, sempre estiveram moucos, mesmo antes da cera que lhes foi imposta. Seus sentidos sempre foram menos daquilo que podiam ser. Agora presos, devendo substituir o pensamento pela atenção devem remar, enquanto Odisseu pode experimentar o prazer do canto das sereias em segurança.
O mesmo acontece com proletários e capitalistas: enquanto alguns são responsáveis por construir o mundo com suas próprias mãos, outros aproveitam seus benefícios e podem se dedicar a atividades agradáveis e intelectuais, distantes da rigidez prática do trabalho opressor. Qualquer coisa que ameace alterar esse padrão de autoconservação provoca medo no indivíduo moderno. O antigo temor diante da força incontrolável da natureza transformou-se no medo de perder o controle, no receio do irracional.
O trabalho mantém o ser humano sempre no mesmo lugar, preso à repetição contínua daquilo que já existe. A autoconservação surge como um meio de se proteger contra as mudanças, que o amedrontam desde os tempos mais antigos.
Tal como os remadores de Odisseu, os indivíduos absolutamente assimilados à lógica da autoconservação não conseguem ver além do rumo previsto para sua embarcação (sua vida?). Assim, fogem amedrontados das tentações provenientes de sua própria natureza. E, mais uma vez, a violência do sujeito contra si mesmo é intensificada.
Os remadores produzem, reproduzem e garantem as suas próprias necessidades materiais e as de Odisseu — assim como os proletários produzem tanto para si quanto para seus patrões. A eles é imposta uma escolha ilusória: a de fruir a vida sem se perder, ou a de ouvir a melodia sedutora da existência sem correr riscos, pois sua segurança é garantida por aqueles que não podem sentir prazer no trabalho, pois estão coagidos; que não podem se comunicar, pois estão moucos; que não conhecem o prazer do fruto de seu trabalho, tampouco do percurso que constroem, pois têm a cera (analogia ao mito) nos ouvidos.
Os remadores precisam garantir a sobrevivência, a autoconservação. Ou seja, os proletários garantem a sobrevivência do mundo, mas para isso não podem se distrair nem fruir dele. Apenas alguns podem. Esse discurso, inclusive, é usado como forma de resistência contra a ampliação de direitos, por exemplo, na negação dos direitos trabalhistas, como podemos identificar em algumas preleções contra o fim da escala 6×1, ou mesmo nos discursos inflamados que defendiam a continuidade do trabalho (para alguns) durante o isolamento social enfrentado na pandemia da Covid-19.
Os trabalhadores, escravizados ou “livres”, precisam seguir seu destino irremediável de suprir a materialidade do mundo. Contudo, a tragédia é que esse destino foi fabricado por aqueles que detêm o poder.
Finalizando, vale trazer a leitura do encontro de Odisseu com o ciclope Polifemo. Nesse episódio, ele usa mais um estratagema para sobreviver: renuncia à sua subjetividade ao afirmar que se chama “Ninguém”. Ou seja, sua sobrevivência depende da negação da forma — da mimetização do amorfo.
Ele precisa perder a forma para sobreviver. Com sua subjetividade negada, logra êxito em escapar da morte. Podemos interpretar, a partir da leitura de Adorno e Horkheimer, a ideia da reificação[2] do sujeito nas sociedades capitalistas: um sujeito que precisa se tornar sem forma (amorfo) para garantir sua sobrevivência.
Historicamente, vemos esse sujeito perdendo sua forma: nos trabalhos das sociedades escravocratas, onde a identidade era negada (como no caso das mulheres e dos escravizados que não eram reconhecidos como cidadãos na Grécia), e no trabalho pré-capitalista.
Percebemos que, cada vez mais, para garantir a autoconservação, o sujeito precisa tornar-se sem forma — ou seja, precisa coisificar-se. E, assim, assegura sua subsistência e sua sobrevivência.
Dessa forma, a leitura crítica proposta por Adorno e Horkheimer revela que o mito de Odisseu, longe de ser apenas uma narrativa épica, se torna uma poderosa alegoria da constituição do sujeito moderno e da racionalidade capitalista. A dominação, a separação entre prazer e trabalho, a coisificação do sujeito e a renúncia à própria identidade em nome da sobrevivência são aspectos centrais que atravessam tanto a Odisseia quanto as estruturas sociais contemporâneas. O herói que se amarra para ouvir as sereias, que se diz “ninguém” para sobreviver, torna-se espelho de um sujeito que, para se manter vivo, deve calar-se, moldar-se e apagar-se. Ao iluminar essas contradições, Adorno e Horkheimer não apenas desvelam as raízes míticas da razão moderna, mas também convocam à reflexão sobre os limites e os custos humanos da autoconservação enquanto fundamento da civilização.
Notas:
[1] Regressão a uma mimese incontrolada.
[2] Conceito lukacsiano que significa coisificação.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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Foto da Capa: Adorno e Horkheimer / Reprodução.