As coisas se resolvem com uma “conversa olho no olho”. Muito já ouvi falar isso, uma crença quase mágica que “conversando a gente se entende” e que basta que duas pessoas conversem, uma olhando no olho da outra que tudo irá se resolver. A regra 7-38-55 foi uma das primeiras a desmentir isso, afirmando que o conteúdo das palavras representa apenas 7% do que é uma comunicado em uma conversa, sendo o tom de voz responsável por 38% e a linguagem corporal, por 55%. Mesmo que essa regra também já tenha sido um tanto desmistificada, é inegável que as palavras ditas são apenas parte da comunicação. Quanto aos demais elementos, tanto o tom de voz como a linguagem são sujeitos a diferentes interpretações conforme singularidades culturais, sociais de quem está se comunicando. Neurodiversidade também conta e, evidentemente, raça, gênero e classe entram nesse “combo”, o que torna a experiência de se comunicar extremamente rica e complexa.
Outro fato ignorado, ao confiar demais nas palavras ditas “olho no olho”, é que existem pessoas que não falam e/ou não escutam ou aquelas que não se sentem confortáveis em ter um diálogo olhando nos olhos do interlocutor, como, por exemplo, grande parte dos autistas.
No prólogo de sua autobiografia, “Olhe nos meus olhos”, o autista Jon Elder Robinson conta:
“Olhe nos meus olhos, rapaz!”
“Não posso dizer quantas vezes ouvi essa frase agressiva e dolorosa. Tudo começou quando entrei no primeiro grau. Ouvi esse comando de pais, parentes, professores, diretores e de todo o tipo de pessoas. Ouvi tantas vezes que estranhava quando ninguém a proferia.
Às vezes, a frase vinha pontuada por uma reguada desferida pelo professor. Ele diria: “Olhe para mim quando eu estou falando com você!” Eu me contorceria e continuaria a olhar para o chão, o que o tornaria mais furioso. Eu daria uma rápida espiada em sua face hostil, me contorceria ainda mais, desconfortável naquela situação e incapaz de concatenar as palavras, e rapidamente desviaria o olhar.”
Jon relata que muitas vezes ouviu: “Ninguém confia num cara que não olha você nos olhos.” E confessa:
“Eu não conseguia entender por que eles ficavam tão agitados, nem ao menos por que era tão importante olhar nos olhos dos outros. A vergonha me dominava, porque eu sabia o que as pessoas esperavam que eu fizesse e, mesmo assim, eu não fazia. O que havia de errado comigo?”
Não há nada errado com Jon. Ele é autista, é diferente e não se encaixa nos famosos versos de Chico Buarque, “Olhos nos olhos, quero ver o que você diz.”
Se as palavras são apenas parte da comunicação, podemos nos expressar de várias formas, inclusive por gestos como, por exemplo, na língua brasileira de sinais, bastante utilizado por pessoas surdas. Muitas vezes a vemos desvalorizada, sendo tratada como uma substituta menor para a linguagem falada. Mas as línguas gestuais variam de lugar para lugar, temos a nossa LIBRAS, assim como há uma AUSLAN (língua australiana de sinais) e a ASL (língua americana de sinais) nos EUA. Línguas de sinais tem expressões regionais e sotaques, traduzindo a diversidade e riqueza cultural em gestos.
Steve Silberman, em seu magnífico livro “Neurotribes”, fala de uma escola em Connecticut, chamada Behaven, fundada por Amy Lettick, mãe de um menino autista que sofreu exclusão e foi expulso de escolas regulares. Lettick construiu uma escola ampla e com bastante verde, sendo projetada para atender as necessidades e o conforto de seus alunos. Salas de aula arejadas foram projetadas para reduzir imagens e sons que pudesem distrair os alunos. Cozinhas, banheiros e lavanderias eram extragrandes para servirem também como espaços pedagógicos para ensinar autocuidado, necessário para dar maior autonomia para os alunos. Além do currículo regular, os alunos aprendiam tarefas como assar pão, construir móveis, cultivar alimentos e flores ornamentais, escrever à mão e encadernar livros. Também eram oferecidos cursos de educação sexual para adolescentes e estudantes mais velhos, o que era inédito nas escolas para pessoas com deficiência.
Como nos relata Silberman:
“Em 1972, a escola matriculou seus primeiros alunos autistas e surdos. Para acomodá-los, toda a equipe aprendeu a linguagem de sinais. A sinalização acabou por ser um meio de comunicação popular em Benhaven, mesmo para estudantes ouvintes. Lettick percebeu que estava sendo dada muita ênfase ao ensino de crianças autistas a falar, quando o que era verdadeiramente essencial era capacitá-las a se comunicar. Usando sinais, alunos que antes não conseguiam aprender a ler e escrever conseguiram fazê-lo. “É fascinante poder observar os processos de pensamento enquanto as crianças pensam em voz alta em linguagem gestual enquanto fazem o seu trabalho”, escreveu Lettick. “Freqüentemente vemos essas crianças conversando sozinhas durante o dia, obtendo a mesma satisfação ao sinalizar que as crianças falantes obtêm ao falar suavemente consigo mesmas na linguagem falada.”
O popular apresentador de TV, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, tinha o famoso bordão “quem não se comunica, se trumbica”. Os alunos surdos e autistas de Benhaven mostram que sempre há uma forma de se comunicar.
Por fim, trago outra situação em que pessoas com diferentes deficiências conviveram e que suas habilidades as levaram a driblar o sistema. Foi na invasão a um prédio público federal em San Francisco, na Califórnia. O protesto, realizado em 1977, reivindicava que fosse regulamentado o Rehabilition Act of 1973, primeira lei em defesa dos direitos das pessoas com deficiência naquele País. A invasão durou 28 dias, com mais de uma centena de pessoas com deficiência se recusando a deixar o prédio, o que ocorreu apenas após a publicação das normas de proteção aos direitos das pessoas com deficiência.
Em sua autobiografia, “Being Heumann”, a ativista Judith (Judy) Heumann nos conta do período em que o governo determinou o corte de energia e dos telefones no prédio. Os ativistas pensaram que seria o fim do seu protesto, pelas dificuldades de prover condições dignas para pessoas com tão diferentes condições, como Judy, que contraiu poliomielite quando bebê, tendo utilizado cadeiras de rodas pela maior parte de sua vida. Outra questão de grande importância era como se comunicar com apoiadores e, principalmente, a imprensa, que publicava artigos e declarações públicas, o que gerava pressão sobre o governo. Ser calado tornaria o movimento tornaria irrelevante.
Foi então que eles perceberam que tinham “uma arma secreta”: a linguagem de sinais.
Nesse momento, as declarações e mensagens foram levadas aos surdos que também estavam isolados no prédio. Esses, foram até as janelas que davam para a praça onde os apoiantes permaneciam em vigília. Ao chamar a atenção dos manifestantes surdos e dos intérpretes de língua de sinais do lado de fora, transmitiram as mensagens pelas janelas. Os manifestantes surdos e os intérpretes levaram então as mensagens aos seus destinatários.
“Foi bonito”, diz a ativista.
Mais uma situação mostrando que o importante era se comunicar e não falar. Afinal, “quem não se comunica, se trumbica”. E pessoas surdas tem o “superpoder” de falar à distância mesmo privadas de telefones, rádios ou megafones. Bastava uma janela onde se pudesse enxergar o que se falava. E, como em toda comunicação, alguém disposto a “falar” e outro a “ouvir”, mesmo que não falem nem ouçam palavras. Ainda que não seja olho no olho. Ainda não inventaram uma forma mais eficiente de comunicação do que alguém realmente interessado em compreender quem está à sua frente.
Foto da Capa: Agência Brasil
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