O que fez uma menina negra de 18 anos, ainda na década de 1970, apaixonada por danças folclóricas, iniciar uma obra que, em 2024, atingiu o cinquentenário e segue viva nos pés, nos passos, no embalo do corpo, no coração e na alma das milhares de pessoas que por ela passaram ou com ela conviveram?
O que fez um jovem negro sair de Santana do Livramento, fronteira com o Uruguai, e trazer sua família para ocupar um território histórico, que marcou a vida da comunidade negra liberta desde as últimas décadas do século 19?
O que fez uma profissional do comércio, bem remunerada em uma butique, se questionar quanto ao próprio futuro, largar tudo, ingressar no curso de História e se dedicar à docência no Ensino Público?
A Ancestralidade.
A força da ancestralidade, que traz em si a identidade, o espírito de luta, a resistência, o fortalecimento e a valorização das raízes africanas, certamente foi o que moveu a vida desses três personagens históricos para Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o Brasil.
Assim como honraram a memória de seus ancestrais, Iara Deodoro, Sérgio Fidélix e Claudia Duarte indicaram os caminhos e fizeram de suas vozes, corpos e pensamentos veículos para que descendentes, familiares, estudantes e demais pessoas de seu relacionamento pessoal e profissional sigam os seus exemplos. Que continuem na busca permanente de equidade e respeito, em um país onde a maioria da população, embora se autodeclare negra, ainda (re)descobre, a cada novo dia, sua potência por séculos abafada por narrativas racistas. Essa potência está na dança, na história, na ocupação de espaços. Está no viver.
Olorum, o Criador do Universo, na mitologia Iorubá, os recebe. Agora, em outra forma de existência, eles seguem abrindo caminhos e guiando quem fica para que em seus feitos sejam sempre ancorados na filosofia Ubuntu.
A quem fica, um pouco da trajetória de ensinamentos desses novos ancestrais:
Mestra Iara Deodoro nasceu em Porto Alegre, em 1955. Foi bailarina, coreógrafa e criadora do Grupo de Dança Afro-Sul, em 1974, e do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê. Graduada em Serviço Social, com foco em famílias negras monoparentais, cursou pós-graduação em Educação Popular e Gestão em Movimentos Sociais.
Artista e educadora, dedicou 50 anos à arte de matriz africana. Coordenou o Afro-Sul Odomodê com o companheiro Paulo Romeu Deodoro, cantor, instrumentista, compositor e licenciado em música, desenvolvendo projetos educacionais e culturais em dança, música, moda e gastronomia com base na cultura e na história africana e afro-brasileira.
No Afro-Sul, sempre teve como propósito estabelecer intercâmbios e tecer redes de colaboração, com outras instituições de Porto Alegre e de outras cidades do Rio Grande do Sul e no Brasil, para ações coletivas culturais e educativas.
Coreógrafa da Ala Afro-Sul, que desfilou no carnaval de Porto Alegre por 25 anos, participou de diversas escolas de samba durante os desfiles, além de ter coreografado comissões de frente das maiores escolas de samba de Porto Alegre como: Bambas da Orgia, Estação Primeira da Figueira, Imperatriz Dona Leopoldina, entre outras.
Ao longo de sua trajetória foi premiada diversas vezes, ministrou aulas em disciplinas eletivas de dança na UERGS e UFRGS e integrou o júri do Prêmio Açorianos de Dança de 2011 a 2017. Gestora do Projeto Cultural Nossa Identidade, dedicado a crianças dos 6 aos 12 anos. A iniciativa deu origem ao projeto Lanceirinhos Negros.
Sergio Ivan dos Santos Fidelix, nascido em 1960, descendente de quilombolas, foi presidente da Associação Quilombola Família Fidelix. Homem simples, de riso fácil, carismático e tranquilo. Muito lutou pelas causas sociais, empenhando grande parte de sua vida em prol da igualdade racial e reparação ao povo preto.
Foi policial militar e teve um papel importante para a cidade de Porto Alegre. Líder comunitário, dedicava-se à garantia dos direitos dos irmãos quilombolas, indígenas e demais comunidades em situação de vulnerabilidade social. “Foi um grande guerreiro. Nós, enquanto liderança, nos despedimos com grande pesar e respeito”, citam os integrantes do Quilombo Família Fidelix.
Sérgio, ao lado de Milton Waldir Teixeira Santana e Hamilton Correa Lemos, foi um dos fundadores da comunidade, na década de 1980. Ocuparam o espaço na Rua Otto Ernest Maier, região que foi por longos anos chamada de Ilhota, no encontro entre os bairros Azenha, Menino Deus e Cidade Baixa. A ilhota ficou conhecida pela composição (e moradia) de Lupicínio Rodrigues.
Na década de 1960, a região foi desconfigurada e sua população deslocada pelo poder municipal para o recém-criado Bairro Restinga. A área que restou da Ilhota recebeu a construção das moradias de 35 famílias. Após décadas de luta, em 20 de novembro de 2023 a Associação Quilombola Família Fidélix recebeu a portaria de reconhecimento territorial do Incra.
Professora Claudia Helena da Silva Duarte, nascida em 1963, foi licenciada em História e especialista em História da África e Afro-brasileira (FAPA). Foi professora da Rede Estadual de Educação do Rio Grande do Sul e da Rede Municipal de Educação de Porto Alegre.
Por anos, conduziu o Projeto África, Fascínio e Diversidade, e sempre levou a Educação para as Relações Étnico-Raciais para a sala de aula, antes mesmo da implementação da Lei 10.639/2003. Foi apoiadora do Sarau Sopapo Poético. Em um dos seus últimos trabalhos, organizou a obra “Lei 10.639/03: 20 anos existindo e resistindo”. Nele, descreve os projetos “África – Fascínio e Diversidade: Uma Experiência Pedagógica”, “Meu Bairro, Minha Cidade” e “Memórias e Histórias De Um Tambor”. Todos foram aplicados junto a estabelecimentos públicos de ensino e estão disponíveis para acesso gratuitamente.
Essa singela homenagem foi possível com o apoio de informações gentilmente cedidas por familiares e pessoas amigas dos protagonistas, aos quais agradeço e reforço meu carinho e abraço fraterno.
Eduardo Borba é jornalista graduado pela PUCRS, praticante de corridas de rua e de ações para promover a Diversidade, Equidade e Inclusão. Mestre em Comunicação Social e especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.
Foto da Capa: Montagem com acervos pessoais
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