A impressão que tenho é de que ninguém está se dando conta do que realmente está acontecendo com o planeta, e isso inclui uma boa parcela de setores-chave, como a meteorologia e a imprensa. Em 2023, passamos por um ponto de inflexão climático, quando, entre outros aspectos, a tendência até então observada de aumento da temperatura média anual do planeta deu um salto, e esse aumento passou a ocorrer muito “fora da curva”. Não por acaso, o cientista William Ripple e seus colegas intitularam um artigo publicado no final de 2023, na revista Bioscience, de Relatório sobre o estado do clima em 2023: entrando em território desconhecido. O território desconhecido refere-se a um comportamento do clima que não segue mais padrões conhecidos. Isso significa que o clima, a partir desse momento, não pode mais ser analisado com base nos padrões existentes, pois eles não valem mais. E nunca mais valerão.
O ano de 2024 e este início de 2025 igualmente têm se caracterizado por quebras sem precedentes de recordes climáticos, a ponto de janeiro de 2025 ter sido o mês de janeiro mais quente já registrado na história, não obstante o fato de estarmos sob a influência do fenômeno La Niña. Em meio a essa realidade, temos lido e ouvido falar cada vez mais em ondas de calor. Ondas de calor são períodos de calor intenso que superam as médias históricas de uma determinada região em uma determinada época do ano. Os meteorologistas, de um modo geral, entendem que, para que fique caracterizada uma onda de calor, esse período deve ser de, no mínimo, 5 dias, com temperaturas no mínimo 5°C acima da média. Porém, essa média, embora seja fundamental para que possamos comparar o clima atual com o de anos anteriores, não serve mais como parâmetro para caracterizar fenômenos climáticos mais recentes. Como foi dito acima, o clima que estamos experimentando agora, e o clima que teremos daqui para a frente, não obedece e nem obedecerá mais a padrões conhecidos. Por isso, entendo que não faz mais sentido nos referirmos a ondas de calor. O que temos visto, e veremos cada vez mais, são pequenos períodos de temperatura dentro das médias históricas em meio a ondas de calor intermináveis. Um mar de calor com pequenas ondas negativas próximas à antiga normalidade. Por enquanto, essa afirmação pode parecer um pouco exagerada, mas, se de fato for, em breve não será mais.
O contexto climático que estamos vivendo também não pode ser classificado como o “novo normal”, como se ouve falar por aí. A menos que o “novo normal” seja entendido como uma constante quebra de paradigmas. Porque não existe mais o normal, e o novo será sempre novo, não se repetindo no futuro. Daqui para a frente, o recrudescimento do clima extremo provocará constantes mudanças e rupturas em todos os sistemas a que estamos acostumados, com a consequente falência de modelos construídos durante anos, décadas ou séculos e quebras de paradigmas em várias esferas de nossas vidas. Isso vale não somente para conceitos meteorológicos, como o de ondas de calor. O valor relativo dos bens, por exemplo. O que valerá mais em um planeta inóspito ao cultivo de alimentos: um SUV de luxo ou um quilo de feijão? Se hoje já é possível questionar o conceito de ondas de calor, quanto tempo levará para que a realidade torne o feijão mais valioso que o SUV?
Por enquanto, fica a sugestão para que a meteorologia crie novas terminologias, adaptadas a um clima em constante mudança e com um comportamento fora de qualquer padrão conhecido. E que a imprensa siga essa mudança e passe a tratar do assunto com a gravidade que ele exige. Chega de tapar o sol com a peneira e fingir que ele não está mais quente por estarmos assistindo a tudo protegidos pelo ar-condicionado. Em 2023 e 2024, parte da imprensa não se cansou de atribuir os eventos climáticos extremos ao fenômeno El Niño. De forma revoltante e absurda, omitia sistematicamente o papel das mudanças climáticas, ou seja, o papel do ser humano, nas tragédias que aconteceram. O El Niño se foi e não levou consigo os extremos climáticos. E agora? Chegou a hora de ‘dar a real’? Enquanto as pessoas não se derem conta do que realmente está acontecendo, não teremos nenhuma possibilidade de frear o colapso do planeta.
*Eduardo Baldauf é arquiteto e mestre em Sustentabilidade e Gestão de Riscos.
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Foto da Capa: Freepik