Esta semana, foi reaberto o segundo andar do Mercado Público de Porto Alegre. Ali se concentraram bares e restaurantes que ficaram fechados desde 2013 depois de um incêndio. O belo prédio de estilo neoclássico completou 152 anos e é um dos locais em que a diversidade está mais presente em termos de frequência de público. Pretos e brancos, homens e mulheres, pobres e ricos, profissionais e amadores ali se cruzam em busca de produtos raros ou do cotidiano por preço e qualidade em geral bem atraentes.
Embora o fluxo de consumidores, turistas e “passantes” pelo mercado possa denotar diversidade, não se vê essa realidade refletida no comando das lojas. Existe uma discrepância socioeconômica e racial entre seus permissionários. Das mais de 100 empresas que atuam no local, apenas uma é comandada por pessoas negras. A Beijo Frio é um reduto de resistência e sabor. O ponto oferece sorvetes artesanais, doces pelotenses, cafés, salgados, pratos e sucos com ingredientes provenientes do nordeste brasileiro.
O incêndio de 2013 interrompeu negócios e sonhos de muita gente. Entre os que sofreram o baque, está a Iara Rufino, uma das responsáveis pela Beijo Frio. Até a reinauguração, ela estava temerosa sobre o sucesso da casa depois desse tempo todo fechada. A reforma, o investimento e as campanhas realizadas para a retomada surtiram efeito e trouxeram mais do que um sopro de esperança e, sim, a certeza de que o Beijo Frio já entrou no roteiro dos gourmets e gourmands da capital.
Eu mesma já fui bater meu ponto por lá, e apesar das atribulações de atendimento de um dia atípico de inauguração, pude degustar alguns produtos maravilhosos. Comecei pelo pão de queijo recheado com carne seca desfiada. Crocante e quentinho, a combinação dos sabores do
queijo com a carne ficou perfeita. Eu queria mais um, mas tive de me controlar para provar o waffle recheado com presento e queijo. Foi outro gol. Maravilhoso. O waffle veio tostado e quentinho com o queijo derretendo sobre o presunto coberto por outra camada da massinha. Também queria mais, mas também tive de me controlar porque havia outro item a ser degustado: os sorvetes. A variedade de sabores e a qualidade do produto é um presente dos deuses. Na verdade, das deusas que produzem essa maravilha de forma artesanal. No dia em que estive lá tinha sorvete de cupuaçu, coco, chocolate, banana caramelada, pistache, morango, pera, frutas vermelhas e outros.
Iara e a atendente não deram conta do grande número de pessoas presentes e fornecedores e parceiros da casa acabaram entrando na roda para ajudar. Solidariedade é prática.
Com área ampla e focado em fortalecer a presença da cultura negra no Mercado Público, o novo ambiente da sorveteria tem 90m² e mesinhas espalhadas com bom gosto em volta do balcão central de atendimento ladeado pelos janelões ao fundo da loja com vista o terminal do Trensurb e o Guaíba.
A história da Beijo Frio vem da virada deste nosso século. Ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000, um grupo de mulheres negras da Zona Norte se uniu para fomentar um negócio que gerasse sustento financeiro. Começaram vendendo sorvetes adquiridos de fornecedores. Porém, logo perceberam que se elas mesmas assumissem a produção teriam resultados mais promissores. Investiram em equipamentos próprios e se lançaram na aventura, que deu muito certo. Vieram as participações em eventos, feiras, festas e esse sucesso fez surgir um convite da antiga Secretaria Municipal de Indústria e Comércio – Smic para levarem o negócio para um ponto mais central. Isso foi em 2003. A saga foi longa. Morosidade de trâmites burocráticos, algum preconceito e dificuldades de investimento foram vencidos e a loja conseguiu se estabelecer no Mercado Público em 2008. Foi abatida pelo incêndio e suas consequências se arrastaram durante a pandemia, mas como uma fênix rediviva, lá está, pronta para novos voos.
Para além da qualidade do que oferece, o Beijo Frio ganha ainda mais importância pela representatividade que tem.
É inacreditável que um espaço democrático como Mercado Público, que atrai populações da periferia, que abriga floras com artigos para religiões de matriz africana, ingredientes populares, e que tem o assentamento do orixá Bará em seu centro de passagem, bem na encruzilhada do prédio, tudo ligado essencialmente à cultura negra, não tenha uma maior representatividade entre seus empresários.
Eu sei que eu me repito em minhas falas sobre o protagonismo negro, invisibilidade da população preta e tal. Desculpa aí, mas seguirei falando porque é uma realidade muito presente no meu cotidiano, porque é importante falar mais e mais até que esse quadro mude.