Refleti bastante antes de decidir escrever sobre esse tema. Confesso que ainda estou digerindo tudo o que ouvi naquele dia. A raiva que senti a cada denúncia relatada naquele podcast ainda ecoa em mim. O que eu imaginava ser apenas mais um áudio de entretenimento para acompanhar minhas tarefas acabou se revelando um conteúdo muito mais pesado do que eu jamais poderia prever. De forma brutalmente educativa, expôs as atrocidades de um meio que tenho batalhado incansavelmente para adentrar: o universo literário.
No episódio do podcast CPF na Nota, exibido pela Rádio Novelo em 16 de janeiro, a jornalista e escritora Vanessa Barbara revelou os abusos psicológicos e traições que marcaram seu casamento falido com um sócio de uma das maiores editoras do país. Em seu relato contundente, ela descreve uma série de descobertas devastadoras que a levaram ao limite emocional. Entre os absurdos narrados, Vanessa expõe que o ex-marido fazia parte de uma lista de e-mails composta por quinze homens, todos jornalistas e escritores, alguns deles considerados amigos próximos. Nessas trocas, os homens falavam mal das mulheres, incluindo esposas e namoradas, revelando uma misoginia escancarada que permeava suas conversas. Compartilhavam piadas de extremo mau gosto e reforçavam estereótipos degradantes, tratando as mulheres como objetos descartáveis, evidenciando a toxicidade enraizada no grupo.
Vanessa Barbara narra como a descoberta dessas mensagens desnudou não apenas o comportamento do ex-marido, mas também a hipocrisia de um círculo que parecia progressista e acolhedor. Alguns desses homens são aclamados e já receberam prêmios por retratarem em seus textos causas feministas e sociais. Era natural acreditar que estavam ao lado das mulheres, apoiando suas lutas, prontos para defendê-las contra figuras machistas, misóginas e abusadoras. No entanto, as mensagens revelaram uma realidade perturbadora: uma cumplicidade velada, risadas compartilhadas às custas das mulheres e a perpetuação de uma cultura que as marginaliza e silencia, escondendo-se sob o manto da virtude aparente.
Vanessa já havia abordado os horrores que viveu, ainda que de forma menos explícita, em seu livro Operação Impensável, publicado pela Intrínseca em 2015. A obra, vencedora do Prêmio Paraná de Literatura em 2014, contrapõe a pesquisa da historiadora Lia sobre o plano de ataque à União Soviética, liderado por Winston Churchill após a Segunda Guerra Mundial, com o minucioso processo da protagonista para desvendar o que havia de errado em seu casamento com Tito. Esse conflito pessoal, que se desenrola ao longo de 43 dias, culmina em divórcio. Na trama, a protagonista invade o computador do marido e descobre, por meio de emails trocados nos últimos meses, uma série de segredos devastadores. Aqui, Vanessa Barbara ficcionaliza sua realidade, mas o impacto emocional é inegavelmente real.
Lembro que, há alguns anos, descobri, por meio de conversas de corredor, sobre um grupo de WhatsApp que meus colegas homens mantinham. Não havia nada de extraordinário em terem um espaço para falar de futebol e outros assuntos de interesse comum. O que me incomodou foi saber que, nesse grupo, cada uma de nós, colegas mulheres, tinha um apelido — e, provavelmente, ali éramos alvo de comentários sobre nossos corpos, classificados conforme as métricas que julgavam mais apropriadas. Ao que parece, fui a única a achar aquilo um absurdo, pois nenhuma outra mulher falou sobre o assunto.
O maior problema desse tipo de comportamento é a naturalização. A mania de justificar ou ignorar atitudes masculinas, principalmente quando os homens em questão são considerados “gente boa”. Homens “gente boa” são aqueles que nos cumprimentam com gentileza, fazem piadas que arrancam risadas nervosas e se mostram amigáveis na superfície, mas que, nos bastidores, participam de dinâmicas que nos desumanizam e perpetuam o machismo estrutural. É como se a simpatia social fosse uma permissão para comportamentos tóxicos passarem despercebidos e sem consequências.
No caso dos homens “gente boa” citados no podcast, muitos estão sendo defendidos nas redes sociais. Até mesmo a atual esposa do ex-marido de Vanessa, também escritora de uma editora renomada, publicou um texto em seu blog tomando as dores do companheiro e atacando a vítima. Há quem diga que eles mudaram, que se tornaram melhores ao longo dos anos. A questão é que suas atitudes recentes não demonstram arrependimento ou qualquer esforço genuíno de reparação.
O podcast não apenas expôs essas trocas vergonhosas, mas também levantou questionamentos urgentes: até que ponto comportamentos misóginos continuam a se esconder sob a fachada de colegas respeitáveis? Como romper com esses padrões que parecem tão enraizados? Certamente, ao compartilhar sua história, Vanessa Barbara nos incita a uma reflexão coletiva sobre os espaços que ocupamos, as vozes que toleramos e os comportamentos que devemos, finalmente, deixar de normalizar.
Todos os textos de Andréia Schefer estão AQUI.
Foto da Capa: Do livro Operação Impensável / Divulgação