O desafio que recebi de um colega foi escrever sobre racismo, preconceito e exclusão a partir da minha pele branca e da deficiência para um grande jornal brasileiro. Escrevi, mas o artigo não foi publicado. E para não ficar à deriva, decidi trazê-lo para este nosso espaço de escrita e leitura, tão especial.
Opressão e violência reverberam contra pessoas negras e pessoas que não correspondem ao padrão instituído pela normalidade
É a partir da minha pele branca, que pergunto: quais são as pessoas normalmente interpeladas pela polícia, que acabam agredidas ou presas? E é a partir das minhas observações e da minha sensibilidade que a resposta é indiscutível: são pessoas negras na maioria e pessoas pobres que perambulam pelas ruas em busca de um lugar. A força bruta policial já vem determinada, movida pela violência e pela cor da pele. Quando vamos desacomodar posturas discriminatórias e sacralizadas que não respeitam as diferenças?
Sensibilizar a sociedade para a discriminação que nos ronda é um compromisso que não pode ficar para amanhã. Escrever e falar sobre racismo e direitos humanos é uma forma de resistência. Reivindicar políticas públicas que priorizem o respeito pelo outro sem julgamentos arbitrários e pré-determinados, independente da origem, da cor da pele, da opção sexual ou da condição física, intelectual e social, é o caminho. Mas para que isso aconteça efetivamente precisamos desacomodar conceitos e comportamentos seculares, que criaram a casa grande para o conforto do colonizador/opressor e a senzala, onde eram jogados os negros trazidos da África para servir aos brancos invasores, sem direito a voz. Assim, se definiu que algumas raças são inferiores e devem submeter-se às superiores, neste caso a branca, que se impõem pela força, pela exploração e pelo poder econômico. Assim, indígenas foram expulsos das terras onde habitavam para dar lugar ao estrangeiro que chegava. A história era contada a partir do ponto de vista do branco europeu que detinha o poder. Assim, os olhares foram doutrinados e contaminados e o racismo se instituiu barbaramente, atravessando séculos.
Hoje, quando o protagonismo negro se impõe no país trazendo inúmeras vozes, que representam milhares de outras vozes, é fundamental ouvir, refletir e repercutir. Até porque enquanto políticos arrogantes, comprovadamente corruptos, circulam livremente pelo país e nada os detêm, jovens negros são agredidos pela polícia cotidianamente. Apesar das falcatruas, alguns políticos e seus aliados são protegidos pelo tal “foro privilegiado”. Já os negros, os pobres, os moradores de rua, a população LGBTQi+ não têm foro que os proteja. Pelo contrário! Estão sempre na mira da polícia e do julgamento da sociedade normalizada que não reconhece os diferentes.
Aqueles que deveriam estar nas ruas para proteger a população independente de cor, gênero, raça, opção sexual ou qualquer outra diferença, disseminam a violência ao apontar armas sem saber o que realmente acontece. Foi a partir desta lógica perversa que a Polícia Militar carioca escancarou o racismo que move seus integrantes em um episódio que aconteceu em 2024. Impossível não falar novamente nas atitudes que escancaram os podres poderes e reafirmam o racismo. Então, volto ao episódio.
Um grupo de adolescentes – um menino branco e três negros, entre 13 e 14 anos – ao chegar a um condomínio no bairro Ipanema/Rio de Janeiro, por volta das 19h, para deixar um amigo na porta de casa, sofreu uma abordagem abrupta e desmedida de policiais que passavam pela rua em uma viatura e pararam para ver o que acontecia. Só podem ter deduzido que o branco estava sendo assediado pelos negros que o acompanhavam. Resultado: a viatura subiu na calçada e parou. Os policiais militares desceram já com fuzis e pistolas nas mãos apontadas para os negros. Sem perguntar nada, encostaram o grupo no muro para revistar. Os meninos negros não entendiam o que os policiais falavam porque eram estrangeiros, filhos de diplomatas, e estavam passeando pela “cidade maravilhosa”. O menino branco disse ser de Brasília e fazia turismo com os amigos.
A mãe de um deles, servidora pública em Brasília, alertou os meninos para que não andassem com celular na mão, cuidassem das mochilas e não ficassem sozinhos. Jamais imaginou que “a polícia seria a maior das ameaças”. E desabafou: “É traumático, triste, doloroso. Estão assustados e machucados, com marcas que nem o tempo apagará”. A viagem que os quatro amigos haviam planejado há meses, acompanhados dos avós de um deles, foi uma experiência assustadora. Os policiais, ao se dar conta do erro, liberaram os meninos e alertaram para que não andassem na rua porque seriam abordados novamente. Abordados novamente! É isso mesmo! E já é um decreto. Praticamente uma sentença: negros não podem fazer turismo!
Esse poder agressivo e discriminatório da polícia é inaceitável. Mais uma vez – e já são tantas! – constatamos que numa sociedade historicamente racista, que escravizou, abusou dos serviços e depois rechaçou, não basta ser antirracista. É preciso estar sempre vigilante e denunciar quem não respeita o outro na sua condição. A cruel herança colonial reverbera. A casa grande ainda sonha com a senzala, não aceita o protagonismo negro e culpa o pobre pela pobreza, ancorada no discurso da meritocracia.
E o que dizer de moradores de rua que são espancados? Por que é tão difícil uma maneira civilizada de ajudá-los? É duro admitir, mas meu sentimento diz que a discriminação generalizada aumenta no Brasil. Uma boa camada da população ainda não consegue ver a ousadia e a beleza de movimentos libertários, que levam as pessoas a assumir sua condição, sua cor e o gênero com o qual se identificam para viver. Movimentos que celebram a diversidade pedem uma reflexão urgente sobre a violência sofrida por quem não corresponde ao padrão tido como “normal”. No Brasil, os índices de assassinato e agressão a negros, grupos LGBTQi+ e mulheres são alarmantes e geram insegurança para quem só quer que respeitem o seu desejo e a sua condição.
O que me dá esperança é que temos uma literatura farta neste sentido que está germinando na periferia de Porto Alegre
Vou indicar dois de uma mesma autora, a gaúcha Cristina Ribeiro – Pela liberdade de nos construirmos negras (Pubblicato Editora/2023) e Falas Racistas (Editora PlenaVoz/ 2024). E mais dois, um organizado por ela, que é Vozes Alvoradenses (Editora PlenaVoz/2023) e “20 Poemas para Novembro” (Coletivo de Raça, Gênero e Diversidade da Associação dos Servidores do Grupo Hospitalar Conceição, Volume 2/2023). São livros que cumprem um papel significativo atualmente, onde o protagonismo negro se impõe no país. Os autores dão voz aos discriminados pela cor da pele, apontam os tipos de racismo e ainda trazem poesia. Vamos ouvir essas vozes, que representam milhares de outras vozes, e fazê-las repercutir. Só uma educação voltada para a diversidade, que mostre que a riqueza humana não está na truculência e sim no respeito, na cooperação e na troca, vai nos libertar dos poderes desmedidos ancorados no preconceito. Tudo ainda será precário no nosso país se a discriminação persistir porque carrega um não avassalador. E dói!
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Foto da Capa: Bruno Cecim / Agência Pará