Quem vive no Rio Grande do Sul (RS), ou mesmo fora dele, conhece o orgulho gaúcho. Nenhum outro estado brasileiro canta seu hino em eventos como o RS, nenhum outro cultiva suas tradições e se orgulha da sua história como o gaúcho. Existem Centros de Tradições Gaúchas (CTG) em praticamente todos estados brasileiros e em diversos países do mundo. Mas o que faz este orgulho ser tão forte se propagar além das fronteiras do RS?
A formação da identidade do gaúcho está ligada à história do RS e do Pampa, uma região que abrange parte do RS, Uruguai e parte da Argentina. Curiosamente, no Uruguai e na Argentina o gaúcho não tem o mesmo status que no RS, ele é visto “quase como um caipira” pelos cidadãos das regiões metropolitanas. Portanto, o mito do gaúcho é um fato isolado e foi construído com base em fatores históricos.
Vale lembrar que as duas grandes potências dos séculos XV e XVI eram Portugal e Espanha e que, pelo Tratado de Tordesilhas, que estabelecia uma linha reta entre Belém do Pará até Laguna, o RS pertenceria à Espanha. Depois disto, vieram muitas guerras e troca de territórios, invasões espanholas, mas pode-se dizer que os gaúchos optaram em ser brasileiros. Apesar disto, sempre se sentiram renegados pelo poder central, dominado pela oligarquia do centro do país. Este sentimento de lutar contra os vizinhos hispânicos e se sentir renegados pelo governo brasileiro levou a criação do sentimento de uma nação gaúcha, que resulta mais tarde na Revolução Farroupilha.
No século XIX, houve revoluções e guerras praticamente a cada 10 anos. O gaúcho se diferenciava de outras tropas por serem exímios cavaleiros. Naquela época, o comandante ia na frente e era o exemplo de coragem para seus comandados. Na guerra existia uma certa “igualdade social”, existia a chance do peão, “que virava soldado”, demonstrar mais valentia do que o filho do patrão e ser recompensado por isto. Com tantas batalhas, os gaúchos foram desenvolvendo know-how e se destacam como o Estado com maior número de generais e líderes mortos em combate, e condecorados por atos heroicos.
Houve também atos de traição e genocídio com indígenas e com negros, como no Massacre de Porongos, com o assassinado dos “Lanceiros Negros”, que lutaram na Revolução Farroupilha com a promessa de alforria. Ao final da Revolução, depois de entregarem as armas, foram assassinados, inclusive o seu comandante, o Cel. Joaquim Teixeira Nunes, que era branco e defendia o fim da escravidão. Esta barbárie, foi executada por outro gaúcho, Francisco Pedro Abreu, que comandava o exército imperial. Isto ocorreu em decorrência da negociação para o encerramento da Revolução, pois o Governo Federal não permitiu a liberdade dos negros. Mesmo durante a Revolução Farroupilha, o RS estava dividido entre os que apoiavam os Farroupilhas e os que apoiavam o poder central. Entre os revolucionários, existiam os que eram contra e outros a favor da escravidão. Estas questões não são abordadas nos festejos da Semana Farroupilha.
Terminada a Revolução Farroupilha vieram outras e os gaúchos continuaram lutando entre eles. A revolução de 1893, conhecida como a revolução da degola (o holocausto dos Pampas), foi a mais sangrenta e odiosa de todas. De um lado, os Ximangos (Pica-paus) de lenço branco, comandados por Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos, positivistas que defendiam o poder central, de outro, os Maragatos, de lenço vermelho, liderados por Gastar Martins, que defendiam a descentralização do poder e o parlamentarismo.
Com a chegada dos imigrantes – alemães em 1824, italianos em 1875 e outras etnias -, o RS se tornou uma colcha de retalhos. Aos poucos eles assumiram a cultura gaúcha e, hoje, o maior festival de dança gauchesca ocorre em Santa Cruz do Sul, uma cidade de cultura alemã.
O RS produziu grandes líderes, de todas as correntes de pensamento, de positivistas como Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos, a um líder comunista como Luiz Carlos Prestes. Presidentes e lideranças políticas como Getúlio Vargas, Borges de Medeiros, João Goulart, Assis Brasil, Osvaldo Aranha, Leonel Brizola, Flores da Cunha. Personalidades como Érico Veríssimo, Elis Regina, Lupicínio Rodrigues, Mário Quintana, Iberê Camargo, Araújo Viana, Ieda Maria Vargas, Ruben Berta entre tantas outras.
Diante desta diversidade de pensamentos seria de esperar que o gaúcho buscasse no diálogo conhecer e respeitar as diferenças, só que não. O gaúcho tem um espírito passional, participa dos debates como se fosse para um duelo, querendo dominar outro, na condição de missionário que quer “catequisar” aquela criatura e trazê-la para professar a mesma fé que a sua. Isto explica as polarizações que se tornaram conhecidas como “grenalização”, pois no RS só existem dois lados, ou a pessoa é de direita ou de esquerda, ou é do Grêmio ou do Inter, ou é a favor ou contra alguma coisa. O mundo no RS é branco ou preto, melhor dizendo, azul ou vermelho.
Transcrevo aqui um trecho da palestra de Jaime Betts que me fez pensar que, mesmo distantes dos conflitos do passado, talvez ainda estejamos sob a influência de narrativas que reforçam o ódio e a intolerância como herança:
“O ódio forma um círculo vicioso, pois é o resultado e, ao mesmo tempo, o que promove a falha simbólica do narcisismo da pequena diferença. O ódio é um ponto cego contra o qual nos chocamos como sujeitos, é um verdadeiro câncer no laço social, é o rechaço do significante da diferença. Impulsiona o narcisismo da pequena diferença ao extremo da destruição da imagem narcísica do outro e, portanto, de si mesmo. É um sentimento que remete tanto à execração quanto ao ato de destruição”.
Concluo com o desejo de, na próxima vez cantar: “Ah! Eu sou gaúcho e respeito a sua opinião!”
Ps. Agradeço as contribuições de Kênia Couto e Luiz Henrique Nascimento.
Referência: NósOutros Gaúchos – As identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar – Organizadores: Jaime Betts e Sinara Robin. Editora da UFRGS, 2017.
Foto da Capa: Filme Os Senhores da Guerra | Reprodução
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