Certo dia, tivemos que passar rapidamente na casa de amigos: estávamos com o caderninho cheio daquelas urgências escatológicas que são empurradas para o sabadão. O casal também estava na diligência de seu respectivo bloquinho de tarefas, que pela sutil sugestão de minha amiga em passarmos lá só à noite, ao pretexto de uma taça de vinho, desconfiei que o seu caderninho, na verdade, se tratava de um cadernão de 10 matérias.
O tempo com os amigos tem outra natureza cronológica: acho até que Einstein deve ter se inspirado em algo do tipo para teorizar que o tempo é relativo e que, conforme a velocidade do módulo espacial no qual se encontram os navegantes, as horas seguem em descompasso com as horas passadas no mundo fora do bólido interestelar.
Esse casal em questão nos é muito querido e sempre que acertamos de afivelar assentos diante de uma boa mesa, uma viagem lunar se dispara.
Numa das vezes que fomos à casa deles, apreciamos, por pessoa, uns dois litros de agradáveis bebidas oriundas da fermentação de açúcares, sem contar algum copo d’água: necessário para a saudável manutenção da isonomia entre as substâncias que circulavam no sangue. A jornada da cápsula montada no terraço deles, naquela noite, explorou os asteroides com potencial de extinguir os dinossauros do parlamento brasileiro, as galáxias habitáveis num futuro esperançado e planetas que, no céu escuro, podem até brilhar como estrela, mas que não têm fulgor por energia própria.
Para quem observava de fora, aqueles astronautas das boas conversas estavam realmente em outro modo de tempo: às seis da noite, passa o estudante concluindo seu dia escolar, e eles já estavam lá; às sete, o vizinho tilinta colheres na santa e cotidiana ceia ao café-com-leite, e eles na transformação do vinho; às nove, um pai, tendo vencido os engarrafamentos, chega em casa, e eles, lá; às dez, a meninada é recolhida das ruas, e eles espaçados; à meia noite, o vigilante armado de apito segue sua ronda, e eles desconfiam que alguma hora se passou desde a primeira garrafa; às quatro e quarenta e cinco, algum deles nota que há muita luminosidade naquele módulo para tão pouca lâmpada acessa; às cinco, a música de meia idade vinda de longínquo rádio sugere que a noite se prolonga em desafio ao dia. Às seis da manhã, a teoria de Einstein se comprova: os quatrocentos e oitenta minutos de sono daquele vizinho correspondem às duas horinhas que aparentam ter durado aquele convescote.
O tempo com os amigos tem um passar das horas com um ritmo próprio.
Em outro evento, esse mais modesto, tivemos por ingestão per capita apenas uma garrafa e meia de vinho: éramos só nós quatro: eu levei três e o anfitrião, gentilmente, retribuiu na mesma quantidade. A excursão galática se dividia ora embarcada numa Soyouz de memórias e lembranças de músicas, filmes e causos, ora transportada por uma SpaceX de projetos, predições e planos para um futuro próximo. Noitada tranquila sem maiores excessos, tanto que a única nota fora do tom fora a ciência de que eu havia esquecido os óculos ao lado de uma taça: equívoco de pouca monta, pois, em evento anterior, a notícia fora que eu havia deixado o carro por lá, por iniciativa cuidadosa das mulheres.
O tempo com os amigos tem um Cronos que lhe é particular, são horas de outras coisas, não são de minutos, e muito menos de rigorosos segundos.
Mas, enfim… Naquele sábado (o dia da semana em que o que é urgente para a vida se impõe), passamos lepidamente na casa desses amigos para pegar os óculos esquecidos. Antes mesmo de nos abrir a porta, nossa amiga já avisa que estava no meio de uma tarefa do trabalho e que dedicara o dia para tais obrigações. De nossa parte, respondemos ainda da rua, alertando que também estávamos sobrecarregados.
Porta aberta, entramos monitorando o relógio: eram 14 horas e 47 minutos. Após ligeiros e cordiais abraços, segundo a cartilha das boas maneiras, entramos. Socializamos as angústias apressadas, maldissemos as dúzias de trabalhos indignos a um Hércules. Sentamo-nos. No imediato da comunicação, as amigas se confraternizam por, coincidentemente, estarem certas sobre coisas as quais seus respectivos cônjuges acreditavam possuir a verdade. Sem tempo para tertúlias, tragou-se água e outra bebida à base de cereais maltados, praticamente, um copo para cada. Neste interim, minha companheira cruza as interações lembrando das obrigações que afligiam a todos. Após seu terceiro sobreaviso, nos levantamos, cumprimentamo-nos e nos despedimos rapidamente. Fato ocorrido às 18 horas e 3 minutos… Foram cerca de 200 minutos para nos cumprimentarmos e eu pegar um par de óculos…
O tempo com os amigos não é um tempo do mundo: é um tempo só nosso.
(À Fernanda e Toinho)
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Foto da Capa: Freepik