Em seu maravilhoso conto Funes, o Memorioso, Jorge Luís Borges narra a história de um jovem campônio uruguaio de Fray Bentos que, após um acidente que o deixa paraplégico, desperta para um dom que já tinha, mas que não compreendia completamente antes: uma memória total e infalível. Sem as distrações da vida de peão, sentado só na escuridão do rancho humilde em que vive cuidado pela mãe, Ireneo Funes primeiro se surpreende com essa faculdade, e depois se dedica a tentar compreendê-la. Elabora alguns projetos de catalogação de sua peculiar forma de ver o mundo, até perceber que eles são inúteis porque sua memória abarca tanta coisa que só o esforço de catalogá-la seria interminável. “Minha memória, senhor, é como um monte de lixo”, comenta ele ao narrador da história, um intelectual argentino que tem uns poucos encontros com Funes em ocasiões em que passa férias na Banda Oriental (o conto é estruturado como um imaginário artigo escrito por esse argentino para um fictício volume que estaria sendo compilado no Uruguai para tentar compreender o fenômeno de Funes, já falecido quando o conto começa a ser narrado).
Funes é um conto sobre, entre outras coisas, como a memória tomada sozinha, apenas como arquivo e acúmulo de registros, é inútil sem um esforço de interpretação – e assim sendo, o conto traz uma interessante abordagem sobre questões de linguagem. Um dos projetos intelectuais disparatados a que Funes se entrega após o despertar de sua prodigiosa memória é o de rebatizar praticamente todos os números da língua espanhola usando um sistema de notação referencial que, para ele, é mais lógico do que o sistema indo-arábico que usamos, no qual a quantidade de signos gráficos com que se representa um número e a quantidade de palavras com que se escreve o nome de um algarismo por extenso quase nunca correspondem a partir da primeira dezena. Olhado de fora pelo narrador, contudo, o monumental esforço de Funes parece simplesmente grotesco e arbitrário.
Esforço vazio
“Em lugar de sete mil e treze, dizia, por exemplo, Máximo Perez, em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melian Lafinor, Olimar, enxofre, o naipe de paus, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Cada palavra tinha um signo muito particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas… Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos ‘números’ O Negro Timoteo ou a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender”.
Embora Funes esteja falando de números, o problema posto na cena não é matemático, é linguístico. Os números continuam sendo e valendo a mesma coisa com a nomenclatura delirante que ele vai catalogando. O que muda é como ele escolhe identificá-los, buscando referências e atalhos mentais que só fazem sentido para ele próprio e que só podem ser decifrados e seguidos por alguém com a sua sobrenatural memória.
Com a elegância de que é capaz a ficção, Borges está aqui resumindo um problema da epistemologia da linguagem bastante discutido na Linguística: a tensão entre a arbitrariedade da correspondência que a linguagem constrói entre “as palavras e as coisas” e o fato de que, por mais arbitrário que seja o sistema, ele só prospera se houver um sem-número de negociações, pressões e apagamentos para que o resultado final se estabeleça como consenso.
Consenso
Em palavras mais simples: a palavra cadeira representa uma ideia que, na situação de um diálogo, remete o interlocutor a uma imagem mental ou a uma noção do que seja uma cadeira. Mas nada, em princípio, na palavra “cadeira” explica por que chamamos uma cadeira de cadeira, entende? No português que falamos, essa é a palavra porque a herdamos dos romanos e do latim eclesiástico, com Cathedra, que por sua vez a pegaram emprestada da καθέδρα (Káthedra) dos gregos. É por isso que “cadeira” é um termo até certo ponto arbitrário cuja origem apenas os linguistas especulam. Pode-se traçar sua genealogia, mas não apontar por que ela e não outra foi a escolhida para simbolizar esse elemento da realidade em particular.
Só que, e é esse o dilema da linguagem maravilhosamente exposto por Borges em seu conto, o fato de as palavras serem signos de origem arbitrária não as isenta da necessidade de consenso: para além dos abismos da ontologia e da epistemologia, a linguagem sobrevive porque seus termos são compreendidos pela maioria dos falantes de um idioma, e uma rebelião no centro da linguagem só é possível na arte, não na função mais básica da expressão comunicativa. Por mais que, no terreno pantanoso da metafísica, se possa argumentar que ninguém que ouça a palavra “cadeira” pensa exatamente no mesmo tipo de cadeira, é consenso que “cadeira” significa alguma das inúmeras variações de cadeira à disposição da memória e da imaginação do público. Mas se você quiser ser o diferentão e chamar uma cadeira de “sentável” ou de “portafundo” ou de “pista de rabo”, para que alguém compreenda uma dessas palavras, você vai ter que explicar: “essa é a palavra que eu uso para cadeira”. O signo consensual vai ter que ser a base da sua malfadada rebelião do sentido.
Política episódica
Tenho pensado muito nisso enquanto olho à minha volta e vejo que, parafraseando outro trecho de Borges, tocaram-me tempos difíceis para viver, como a todos. Sempre se disse ao ponto do senso comum que um grande problema do Brasil era que seu povo, seus cidadãos, não tinham memória. Até certo ponto, era uma afirmação válida: mesmo antes da lógica do algoritmo se tornar hegemônica, a imprensa no Brasil, principalmente a da cobertura política, já operava por uma mentalidade de buscar um escândalo novo por semana, depois que o primeiro havia sido ordenado até a casca. Isso criava uma sensação de alarme episódico que, com o tempo, embora se possa argumentar que não era esse o objetivo (alguns argumentam que sim, era), foi agregando o efeito cumulativo do cansaço do brasileiro não apenas com a política e seus problemas, mas do próprio processo democrático, eleitoral, consultivo.
Penso não ter havido uma redação no Brasil em que seus jornalistas não tenham, em certo momento, discutido internamente essa questão, a tensão entre a necessidade de correr para o lado que toda a concorrência estava correndo – e, portanto, para aquilo que o leitor/espectador estava vendo por toda parte e ia achar estranho não ver naquele veículo específico – e a necessidade de manter vivas as pautas para além da sua primeira semana de escândalo e sensação. E mesmo assim, na hora do vamos ver, a imprensa seguia de novo com o seu comportamento episódico que parece referendar algumas ideias que se revelaram perigosas, além de pouco produtivas, como a “podridão geral” da política tradicional. Depois, a própria imprensa parece surpresa com o espaço que ganham na opinião pública os aventureiros que se vendem como “independentes” do “jogo armado da política”.
Enfim, sim, havia e há um certo problema de memória na política brasileira, mas hoje esse não me parece o grande problema no nosso cenário contemporâneo (não só no nosso, já que estamos sentindo os efeitos de uma onda de crescimento de uma extrema direita para a qual o que estamos vivendo não é um acidente, é um projeto). O que hoje parece desconcertar é o quanto estamos vendo não a ruptura da sociabilidade e do debate político como meio de construção de consenso, mas uma desvalorização do próprio consenso. Uma horda para quem os termos não significam o que sua entrada no dicionário significa, e sim o que o discurso do guru-candidato-coach esbraveja, o que já é por si um sintoma de como hoje temos facções que não têm apenas uma visão política diversa de mundo, mas enxergam uma realidade diversa e completamente oposta à de seus desafetos.
Não à toa, a mentira e a confusão são armas consideradas válidas hoje no jogo político, e um sujeito como o agora fora do páreo Pablo Marçal admite tranquilamente que era do jogo espalhar documentos falsos e se comportar como um troglodita – aí sim já operando pela lógica implacável dos algoritmos de redes, construídos para premiar o conteúdo que provoca mais reação, independentemente de qual seja essa reação, aprovação ou revolta.
Que eu esteja errado, mas não é uma questão de solução fácil, e de tempos em tempos penso ser inevitável a emergência cada vez mais numerosa de uma horda de Funes, sujeitos cuja memória é uma montanha de lixo, mas, como define Borges, algo incapazes de pensar, todos eles entregues ao projeto fútil de rebatizar termos, conceitos e noções usando para isso critérios que só fazem sentido dentro dos meandros psicológicos estranhos de sua própria seita. E sem a dignidade austera do sofrido Ireneo…
PS: Sim, eu estou bastante consciente da ironia de começar por Borges, ele próprio um direitista alienado e conservador, e terminar comparando seu conto com a triste constatação de que o projeto atual da extrema direita é de mudar a realidade para seus próprios conceitos. Mas aí é que está a graça que o pessoal que “não separa obra do autor” não consegue enxergar: a obra não é mais dele, é em parte minha enquanto leitor. E é divertido pensar que minha leitura de seu trabalho o faria revirar no túmulo se eu e ele não compartilhássemos do mesmo pensamento ateu que vê na morte um fim absoluto…
Foto da Capa: Gerada por IA
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