Ao longo de sua carreira, Chico Buarque criou canções que são magistrais histórias curtas, de A Banda até a recente Caravanas, passando por clássicos como Construção, O Meu Guri, Cotidiano, Geni e o Zepelim. O que acontece então quando Chico se dedica ao conto propriamente dito? A resposta pode ser encontrada em sua coletânea de contos Anos de Chumbo, um livro muito fino reunindo oito narrativas breves escritas pelo compositor.
Ao longo dessas histórias, Chico retoma não apenas alguns temas e técnicas que são recorrentes em sua carreira de escritor como comprova outra vez que tem um tipo bastante peculiar de voz narrativa dentre os prosadores brasileiros: um texto que consegue ser ao mesmo tempo preciso e elegante sem, necessariamente, soar datado – ou que, nas vezes em que de fato soa datado, sabe por que está fazendo isso e usa o recurso como mais um elemento de composição, como uma camada sutil de sátira e humor.
Sobre isso, a propósito, vamos tirar uma coisa meio ridícula do caminho: é mais comum do que a minha sanidade gostaria de admitir, encontrar em portais abertos a comentários de leitores (o que esta nossa digníssima Sler também é, decisão que não é minha e para a qual eu não fui consultado) manifestações de brasileiros, talvez politicamente alinhados com o ora inelegível ex-presidente do Brasil, mas não só, gritando em alto e bom som que Chico não é um escritor. Gente, se quiserem dizer isso, digam, mas a vergonha é toda de vocês. A esta altura, depois de sete romances em que se nota claramente a consistência de uma voz própria na prosa de Chico, isso é ridículo. As críticas que podem ser feitas a Chico têm de partir desse mínimo denominador comum ou a coisa vira simplesmente bozismo sem controle.
Incerteza e violência
Anos de Chumbo tem, assim, dois elementos de coesão: no plano da forma, a escrita é ao mesmo tempo elíptica e sofisticada. Desde sua estreia em romance com Estorvo, Chico tem se especializado em ser o escritor de um certo tipo particular (ainda que nem sempre muito bem-realizada) de incerteza. Suas narrativas se articulam pelo ponto de vista de alguém que não sabe muito bem o que está acontecendo à sua volta ou que não se preocupa em reconhecer seu ambiente. Às vezes esse elemento é usado para a construção de uma atmosfera de paranoia, como em Estorvo. Outras vezes, é um ponto técnico crucial para a narrativa, como em Leite Derramado, em que a memória fraca do narrador, um homem de quase cem anos, o faz confundir as linhas de seu próprio passado – num espelhamento na forma da repetição estéril das gerações da elite brasileira que é o mote do livro (o tipo de enredo criado para deixar as faculdades de letras do Brasil morrendo de tesão). Em Budapeste, a confusão se dá pelo transplante de um personagem para o centro de um outro país com outro idioma completamente alienígena.
E em Anos de Chumbo essa incerteza é, às vezes, o centro do subtexto de cada conto ou o estratagema que detona o conflito. Cada história parece usar a elipse deliberada de algumas informações e contextos para expressar um Brasil muito contemporâneo, aquele no qual a barbárie e a brutalidade estão tão à vista que não conseguem mais ser escamoteados, mas ao menos tempo não são enfrentados de cara limpa.
A primeira narrativa, Meu Tio, tem uma certa familiaridade provavelmente intencional com alguns contos de Rubem Fonseca ao ser narrado pelo ponto de vista de uma jovem (provavelmente uma adolescente, embora o conto deixe essa parte em aberto) que é levada para um passeio por um homem a quem ela chama de “meu tio” e que ajuda a sustentar sua casa e sua família. À medida que o “tio” a leva em um carro utilitário 4×4 para a praia e para alguns outros lugares do Rio, a simples descrição das cenas, feita pela jovem num tom de aparente inocência desinformada, vai desnudando o elemento central da história: o “tio” é um homem casado, talvez um miliciano corrupto, que transformou a menina adolescente em amante. Nas entrelinhas do relato, emerge um Rio apodrecido, em que o abuso em várias formas e a violência aberta ou velada são a tônica das relações. É uma história que condensa com muito mais força algo que Chico já havia tentado apresentar em Essa Gente, seu romance anterior.
Curiosamente, num indício de que a capacidade de leitura das futuras gerações esteja agonizando ou realmente morta, esses tempos veio parar na minha TL do Twitter (obrigado por isso, Elan Musgo, seu arrombado) uma declaração chocada de uma jovem em idade escolar que estava horrorizada com aquela história “nojenta” de um “tio comendo uma sobrinha”. Mais uns cinco anos por aí e prevejo algum pai preocupado ou mesmo alguma muito jovem guerreira progressista clamando pelo banimento do livro em escolas.
Foco
O segundo conto, O Passaporte, também parte de um engano na narrativa, espelhado na forma como a história engana o leitor. À primeira vista, o conto é apenas um veículo para Chico exorcizar a hostilidade que sofre constantemente vinda do público de extrema-direita no país. Um artista, chamado ironicamente de O Grande Artista, esquece seu passaporte no banheiro do aeroporto e ele é encontrado por um “cidadão de bem” que detesta o artista e decide atrapalhar o dia do outro enfiando o documento o mais fundo que consegue na lixeira embutida na pia. A partir daí, a narrativa segue num fluxo perturbador de insanidade à medida que as consequências do extravio tiram o artista do prumo a ponto de ele próprio incorrer no mesmo erro imotivado do homem que o prejudicou. O que poderia ser Chico caricaturando seus detratores, em uma reviravolta bem-preparada, vira um comentário elíptico sobre como nada de bom sairá da atual onda de polarização.
Por esses dois exemplos, que estão entre os melhores contos do livro, fica claro que Chico parece se dar melhor como contista – talvez um reflexo de seu trato peculiar com a canção – quando se concentra em um único momento de tensão e explora suas consequências com a acumulação de elementos a uma única situação. Quando a narrativa se expande para que o conto abarque uma passagem de tempo algo maior, muitas vezes perde força no processo. Cida, por exemplo, sobre um homem que se torna amigo de uma moradora de rua que se diz uma visitante de outro planeta, é curto, mas padece de uma certa indeterminação sobre seu tema. Já O Sítio, sobre um casal que aluga um sítio para se isolar do mundo durante a pandemia e que serve de metáfora para um relacionamento abusivo, o autor é mais bem-sucedido.
Falsa nostalgia
Outras histórias são atravessadas por elementos oníricos. Copacabana é uma elegia sonhada ao bairro carioca e sua presença como cenário de sofisticação e beleza ao longo do século 20, narrado pelo ponto de vista de um homem que pode ou não ter encontrado Neruda no Copacabana Pallace, ou Romy Schneider, ou John Huston, ou Ava Gardner, e cada relato é logo desmentido por ele próprio sem explicação.
Embora esse elemento de nostalgia por um outro Rio se faça sentir em todo o livro, é temperado com um subtexto de segredos e violência que turva a luz dourada do “passado glorioso” de um Brasil que nunca foi – o que é, é bom lembrar, um dos elementos mais fortes (e vazios) do discurso conservador.
Ah, sim, quem leu outras resenhas sobre esse mesmo livro deve ter encontrado vastas referências a Para Clarice Lispector, com Candura, conto no qual um jovem de 19 anos, filho de uma professora de pintura que dava aulas a Clarice, se vê convidado para um jantar meio intimidador na casa da escritora, de quem é fã. Por algum motivo, esse foi um dos textos mais comentados do conjunto – talvez pela curiosidade extra literária inevitável que a obra desperta por ser a resposta de um sempre reservado Chico a textos que Clarice escreveu para ele quando ele era jovem nos anos 1960. A história do conto também retrabalha um jantar da vida real para o qual ele, jovem, foi de fato convidado pela escritora – ele levou dois amigos bêbados, Vinícius de Moraes e Carlinhos de Oliveira como “escudo”, o que Clarice achou meio decepcionante. Para além do fator “intimidade dos famosos”, contudo, o texto não é dos melhores do volume, e se alguém tem curiosidade real pelo tema, sugiro ir às crônicas originais de Clarice – ou a Jantar, a um conto de Ana Miranda sobre a mesma história, aliás, o que não vi ninguém referir. Está em Noturnos (1999).
Os Primos de Campos, uma história sobre um jovem e suas relações tumultuadas com dois supostos primos que visitavam a ele e a seu irmão na infância, vai gradativamente sendo invadido por uma crueldade e por uma violência que o narrador vai sublimando por meio de esquecimentos traumáticos ou de apagamentos inconscientes de coisas que ele já deveria saber. Anos de Chumbo, o conto título, brinca no título tanto com alcunha da ditadura, quando a história se passa, quanto com o chumbo dos soldados de brinquedo que fazem parte da infância do narrador no período. Nas duas narrativas e em outras das já citadas se percebe que há em andamento no trabalho de Chico Buarque outro tema recorrente: a família como um terreno de segredos e acobertamentos, omissões, relações conflituosas e abusos velados que espelham a própria forma como a sociedade brasileira se estrutura.
Feitas as contas, Anos de Chumbo é um livro sólido no qual Chico prova que, para tristeza de seus detratores, principalmente os de viés político, tem temas de eleição e uma voz própria e identificável.
Foto da capa: Bob Wolfenson/Divulgação