Elie Wiesel, escritor e sobrevivente do Holocausto, dizia que Deus criou o Homem pois adora histórias. Nada é mais judaico do que contar e ouvir histórias e qualquer um que já esteve em uma sinagoga sabe disso, você pergunta algo para o rabino e ele, provavelmente, te responderá com uma pergunta ou… uma história.
Uma nação de storytellers. Um povo de contadores de histórias, assim os judeus são definidos pelo rabino Jonathan Sacks. Lembrei disso ao ver e me emocionar com “Os Fabelmans”, o mais recente filme de Steven Spielberg. A obra é “semiautobiográfica”, um alter ego do consagrado diretor conta o surgimento do seu fascínio pelo cinema ao mesmo tempo em que revela o cotidiano familiar.
O filme fala de cinema, de família e amor. Mostra o conflito entre técnica e arte, pelo diretor que criou filmes colocando a técnica a serviço de contar uma história, apostando nos efeitos especiais. Não é o que acontece nessa obra, que é intimista, um retrato do artista quando jovem, cobrindo dos 7 aos 18 anos do cineasta.
Se Tolstoi disse que todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira, Spielberg me lembrou que as famílias judias se parecem, mas toda família acredita que a sua é mais mishiguene (maluca) que as outras. E não há nada mais judaico que, para contar a sua própria história, começar falando de sua família.
O filme estabelece um diálogo com a literatura judaica contemporânea. Assim como Amós Oz, ele usa de seu poder narrativo para enfrentar valentões e usa o poder de contar histórias como seu “passaporte social”, nas palavras do próprio diretor, que lembra que “era apaixonado por contar histórias, mas também era apaixonado por pertencer a algo para o qual nunca havia sido convidado”.
Da mesma forma, ele passa pelos mesmos problemas de Philip Roth, que, ao retratar o mundo ao seu redor em seus livros, enfureceu família e amigos. Mas esse é um dos ônus a pagar por ser um “Fabelman”. Fabel é fábula em alemão. Os Fabelman sabem que histórias são necessárias para enfiar a cabeça na boca do leão e ainda sair vivo… para contar a história.
O Talmud, a maior obra dos rabinos, divide-se em Halachá e Hagadá. A Halachá é a parte “dura”, a ciência, a legislação judaica em todos seus pormenores discutidos por séculos nos guetos e judiarias. Já a Hagadá são as narrativas, as lendas, enfim: as histórias. Enquanto uma vai ao intelecto, a outra busca a emoção. Escrito após a destruição de Jerusalém e a Diáspora, mostra que, quando a casa pega fogo, corremos para salvar nossas histórias. (E quantas pessoas não dizem que salvariam suas fotos de família se sua casa sofresse um incêndio?)
Voltando ao rabino Sacks, ele nos diz que é pelas narrativas que começamos a entender quem somos e o que esperam de nós. “Saber quem somos é, em grande medida, entender de qual ou quais narrações fazemos parte”.
Ao lermos a Torá e os demais livros bíblicos, naquilo que os cristãos chamam de “Antigo Testamento”, não temos um tratado teológico ou filosófico, mas uma série de histórias que vão se costurando umas às outras com o passar do tempo, o que leva o rabino a concluir que o sentir-se judeu passa mais por se enxergar como parte dessa história do que pela fé.
No próximo mês, será a festa de Pessach, conhecida por muitos como “a Páscoa judaica”. Nela, o grande dever religioso é contar a história da libertação dos judeus da escravidão do Egito. Em cada casa, um narrador conta uma história e nos convida a vivê-la, como se nós mesmos tivéssemos sido libertados da escravidão.
Ao trazer a memória à mesa, transformamos aquela história na “minha narrativa”, um passado que se transforma em minha própria identidade. Partilhamos o pão, as lágrimas e as alegrias, mas, principalmente, a narrativa que dá sentido a tudo isso. Porque as histórias nos servem para lembrar de onde viemos, mas, principalmente, para mostrar-nos para onde vamos.