Nesse mês de janeiro, comemoraram-se os oitenta anos da libertação do complexo Monowitz-Auschwitz (Polônia) pelo Exército Soviético, revelando “aquilo que nunca deveria ter acontecido” (Scholem) e para o quê nós não dispúnhamos de conceitos adequados para exprimir (Arendt).
Há alguns anos, escrevi um livro sobre republicanismo em que afirmava que a exclusão não era apenas um processo social que decretava o fim do pertencimento do outro a uma ordem comum, mas também a impossibilidade de o próprio excluído falar de sua exclusão: são os “incluídos” que o fazem, já que aqueles foram privados dos instrumentos que pudessem dar nome àquele despertencimento. O tema me ocorrera após a leitura de Primo Levi e do paradoxo que leva seu nome: os que morreram nas câmaras de gás de Auschwitz não podiam testemunhar; os que sobreviveram não tinham ido “até o fim” para dar um testemunho integral. Os mortos não falam e os vivos não falam da própria morte (falam da morte dos outros!). Mais tarde, o filósofo Giorgio Agamben mostrou que existia nos campos de extermínio uma figura intermediária que… nem estava mais “vivo”, mas ainda não tinha morrido (fisicamente): eram os Muselmann (o termo não comportava nenhuma conotação anti-islâmica). Eram pessoas que tinham perdido toda a dignidade, vagando pelos campos sem que ninguém lhes dirigisse a palavra, farrapos semi-vivos, fantasmas do sem-sentido, invisíveis. Havia, para Agamben, alguém que podia “testemunhar” integralmente, seres situados numa fronteira em que tinham perdido a condição humana, mas não tinham atingido sequer a dignidade da morte.
Esses imigrantes que vagam em navios fantasmas pelo Mediterrâneo, versão real e palpável da Nave dos Loucos de Bosch, para quem não existe lugar de acolhida, são também seres situados entre os que não são mais (não pertencem mais ao país de partida) e também não são ainda (rejeitados num porto de chegada): párias! A mesma coisa pode ser dita destes imigrantes, agora barbaramente deportados, que tentam a vida nos EUA: sem país de acolhimento, sem meios de retorno, no limbo dos apátridas, sem direitos e sem nenhuma esperança, a não ser a de poder se reunir aos filhos que, como as crianças e os velhos dos campos de extermínio nazistas, “entram em outra fila” (a que levava às câmaras de gás)!
Bem pertinho de nós, a professora Simone Walckoff (UNICAP) dirige projeto de pesquisa e intervenção junto aos abandonados, os “deixados-por-conta”, os fantasmas do sem-sentido do centro do Recife a quem ela, junto com seu grupo de pesquisa, presta apoio psicológico e material. Conversando com ela, pude perceber a existência dos Muselmann entre nós…
Será que Auschwitz foi apenas uma “experiência-piloto”, onde já se ensaiava a vinda do pós-humano: uma entidade sem rosto, sem direitos, sem lugar, sem voz, sem esperança. Breve: sem sentido?
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Foto da Capa: Autor desconhecido.