Já faz alguns anos que assino o aplicativo Mubi. Assim como o Netflix e outros similares, traz um catálogo de filmes. Mas se diferencia da maioria por trazer filmes de grandes diretores como Godard, Bertolucci, Fellini, Chaplin, Kurosawa, Buñuel, Almodóvar, pra citar alguns dos consagrados, e outros mais contemporâneos, mas com o mesmo perfil do que se convencionou chamar de “filmes de arte”.
A esse respeito, tem uma história na biografia de Hitchcock. Quando seus filmes passaram a fazer sucesso na França, a crítica francesa os chamou de obras de arte. Até então, o cineasta pensava que não era um artista, e sim um mero funcionário da indústria cinematográfica norte-americana.
Pois bem. No Mubi tem filmes de diversos países do mundo, de todos os continentes. É um aplicativo de Portugal que preza pela curadoria criteriosa do seu catálogo. Recentemente, assisti a três filmes interessantes dos irmãos Dardenne.
São dois diretores belgas, Luc, hoje com 68 anos, e Jean-Pierre, com 71. Com uma filmografia vasta, receberam por duas vezes a Palma de Ouro em Cannes, pelos filmes Rosseta (1999) e A criança (2005).
No Mubi, estão três obras dos Dardenne. Cito pela ordem a que assisti. O primeiro é Dois dias, uma noite, de 2014. Conta a história de uma operária, Sandra, interpretada por Marion Cotillard, que tenta voltar ao trabalho após ter uma crise de depressão. No entanto, seu emprego foi trocado por um aumento de salário com o resto da equipe. Diminuiria o número de funcionários e repartiriam o custo da sua vaga com os outros operários. A saga da personagem é tentar reverter a situação, tendo que, para isso, enfrentar e superar seu próprio drama de saúde psíquica.
O segundo é A garota desconhecida, filme de 2016. Com uma trama de filme policial, temos um crime para descobrir quem é o responsável pela morte. Mas o drama se dá também em duas dimensões. Uma é a culpa que é sentida por uma jovem e promissora médica, interpretada por Adèle Haenel, que optou por não atender à campainha do seu consultório depois do expediente. Fica sabendo depois que era uma jovem negra pedindo ajuda, tendo sido morta em seguida. A outra dimensão é o lugar social e o pouco valor dado à vida das pessoas à margem da sociedade branca da Bélgica.
O terceiro é O garoto da bicicleta, de 2011 (foto da capa). Mostra o encontro de um menino de doze anos, que foi abandonado pelo pai, com uma cabeleireira, papel da atriz Cécile de France, que o adota. É, como os outros dois, um contundente drama social com desdobramentos na psicologia de cada personagem. A interpretação do garoto órfão pelo jovem ator Thomas Doret é comovente.
A estética dos Dardenne me lembrou o neorrealismo italiano. São dramas sociais, vivências cruas e uma pretensão de captar a vida sem filtros. No entanto, o ritmo da narrativa é acelerado, como se tivéssemos um neorrealismo pós videoclipe. As cenas e os pequenos dramas se sucedem de uma forma que não tiramos os olhos da tela.
Comentei isso com minha filha, a roteirista, assistente de direção e diretora de filmes Carol Silvestrin, que via comigo, meu filho e minha esposa, na sala do seu apartamento. Ela falou que a estética lembrou para ela os princípios do Dogma 95. É um movimento cinematográfico internacional lançado a partir de um manifesto em 1995, em Copenhague, na Dinamarca.
As regras do Dogma são que a filmagem deve ser feita no local, sem acessórios ou cenografia. O som não deve ser produzido separadamente da imagem. Trilha sonora só se fizer parte da cena, com alguém tocando, a música no rádio ou em algum aparelho. A câmera deve ser usada na mão. O filme deve ser em cores como a vida. São vetados truques fotográficos e filtros. Também não há deslocamentos temporais ou geográficos. O filme ocorre na época atual.
Os irmãos Dardenne não figuram entre os criadores do movimento Dogma 95, mas seguramente compartilham de muitos dos seus princípios.