É muito comum os pais, em vida, resolverem ajudar a todos ou somente alguns dos filhos ou netos, doando-lhe bens, os quais, se seguido o curso natural da vida, somente seriam recebidos pelos beneficiados pelas doações (donatários), quando houvesse o falecimento dos doadores. O que na época parecia uma ótima ideia, pode se tornar um pesadelo, pois os filhos prejudicados, com frequência se sentem tremendamente decepcionados com os pais e com os irmãos beneficiados. Assim, para corrigir as injustiças, e até mesmo para extravasarem suas mágoas, acabam ajuizando demoradas e, em alguns casos, caras disputas judiciais, o que é dolorido para todos.
Se essas doações, ou até mesmo testamentos que beneficiem um herdeiro em detrimento dos outros, não forem muito bem discutidos com todos os integrantes da família, acordados e digeridos por todos, a chance de ocasionar uma grande cisão dentre os irmãos é enorme. O beneficiado, com raras exceções, será visto, pelos prejudicados, como alguém que manipulou os doadores para obter uma vantagem patrimonial, como alguém desleal com os outros irmãos, sem falar do imenso sentimento de rejeição dos que forem preteridos. Acabam todos por perder os pais e os irmãos ou irmãs, ainda que sigam vivos.
Já vi casos em que os pais inclusive adiantaram, em vida, uma pequena quota social para um dos herdeiros, o que na realidade significou o controle acionário da empresa “da família” por ocasião da morte dos pais. Para melhor exemplificar, suponha que os pais, de dois filhos, antecipem, em vida, 10% das quotas sociais para um dos filhos. Isso, se considerado o pequeno valor envolvido, a princípio não teria tanto impacto. No futuro, quando houver a morte e os inventários dos pais, além do impacto emocional, poderá haver um grande choque financeiro, pois o herdeiro que não recebeu a doação, somente irá receber 45 % das ações. Sendo assim, o controle acionário da empresa ficará nas mãos de um irmão ou irmã. Os desdobramentos a partir daí irão depender do tipo de relacionamento entre os irmãos, dos projetos de vida de cada um, dos momentos pelos quais estejam atravessando, dentre outras nuances. O mesmo acontece nas chamadas “holdings familiares” nas quais os pais, alegando uma discutível economia tributária, criam uma empresa (“holding”), onde são colocados todos os bens da família, e cujo lucro deve ser repartido dentre os sócios da empresa que, depois da morte dos pais, geralmente, serão apenas os irmãos ou irmãs. Para piorar a situação, muitas vezes deixam clara que a administração deve ser exercida por um deles.
Pode ser que tudo o que um deseje é não ter que tomar decisões empresariais e ter o outro à frente da “holding” seja o melhor dos mundos. Todavia, isso é algo raro de acontecer, principalmente quando atinge o bolso, parte sensível do corpo humano. Infelizmente, quando o assunto é riqueza e poder, as desavenças surgem e a confusão impera. Quase sempre, as filhas mulheres são as mais prejudicadas quando ocorrem doações ou a criação de “holdings familiares”, pois por uma tradição machista, geralmente os filhos homens acabam recebendo as melhores fatias do “bolo patrimonial” e sendo os escolhidos para gerirem a empresa, ou seja, todo o patrimônio que constituiria a herança dos filhos. Assim, em alguns casos, um herdeiro pode herdar as quotas sociais, mas não pode dispor livremente do que seria a sua herança. Por conseguinte, mesmo legalmente tendo um grande patrimônio, podem de fato ter de viver modestamente e passar por dificuldades. Casos assim acabam custando muito caro e se tornam batalhas que levam a dissolução da sociedade, com prejuízos econômicos que poderiam ter sido evitados, se deixassem os herdeiros chegarem a um acordo no momento certo, sem a intervenção dos pais.
Normalmente, nos casos em que houve antecipação de herança, os herdeiros prejudicados podem, por ocasião dos inventários, requerer que seja realizada a colação dos bens. Colação é o nome pomposo que se dá ao ato pelos quais os herdeiros beneficiados por doações realizadas por seus pais, em vida, devolvem ao espólio, isto é, ao conjunto de bens que compõe a herança, o que receberam, para que seja obtida uma igualdade, na partilha dos bens, com os demais herdeiros.
O Código Civil determina que “os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação”, e estabelece que para o cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível. A legítima é a parte do patrimônio do doador ou testador, que “este não pode privar os seus herdeiros em linha reta, por atos a título gratuito, testamento ou doação anterior”.
Por definição legal, a legítima corresponde à metade dos bens da herança, e os herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Contudo, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os companheiros também são herdeiros necessários, e que para alguns dos mais importantes doutrinadores brasileiros, dentre eles, cito Flávio Tartuce, segundo o Superior Tribunal Federal (STF), os companheiros também seriam herdeiros necessários em razão do julgamento do Tema 809, que estabeleceu a seguinte tese:
“É inconstitucional a distinção entre regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1829 do CC/2002 (A mesma tese foi fixada para o Tema 498)”
Por outro lado, alguns outros juristas, também renomados, discordam do entendimento acima. Para eles não compete à doutrina ou a jurisprudência regulamentar e atribuir à união estável os efeitos de sociedade conjugal, transformando-a em um casamento forçado. Porém, de uma forma majoritária os tribunais vêm seguindo o entendimento do STJ.
Para se calcular o valor da legítima, deve ser considerado o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e das despesas do funeral, e adicionados, posteriormente, o valor dos bens sujeitos a colação. Em que pese o Código Civil determine que o valor de colação dos bens seja, aquele atribuído no ato da liberalidade, em decorrência da inflação, o entendimento jurisprudencial é de que tais bens devem ser levados à colação pelo valor constante à época da doação, corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão para assegurar a igualdade dos quinhões.
Se não tiver constado valor certo, no ato da doação, nem tiver sido feita uma estimativa naquela época, os bens serão conferidos na partilha pelo o que se calcular que valessem naquele momento.
Não entrarão em colação o valor das benfeitorias acrescidos, as quais pertencerão ao herdeiro donatário, correndo também à conta deste os rendimentos ou lucros, bem como as perdas e danos que eles sofrerem. Somente o valor dos bens doados entrará em colação.
Importante destacar que os pais podem fazer doações, antecipações de herança, de bens que integrem a sua parte disponível. O Código Civil expressamente permite que sejam “dispensadas da colação as doações em que o doador determinar saiam da parte disponível, conquanto que não a excedam”, ou seja, que decorram da metade dos bens que o doador pode dispor livremente. Entretanto, o Código Civil determina que essa dispensa de colação deve ser outorgada pelo doador em testamento ou no próprio título de liberalidade, ou seja, no próprio instrumento de doação, se for um imóvel, por exemplo, essa dispensa deverá constar na escritura pública de doação do imóvel.
Todavia, essa dispensa de colação formal no próprio instrumento será dispensada se a liberalidade for feita a descendente que, ao tempo do ato, não seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário. Nesse caso há a presunção legal de que a liberalidade decorre da parte disponível. Por exemplo, se um avô doa um imóvel para um neto, cujo pai ainda está vivo e que é filho do doador, a doação presume-se imputada na parte disponível do doador, pois, ao tempo do ato, o neto não seria chamado à sucessão como herdeiro necessário. A necessidade de dispensa da colação somente é exigida quando a doação for realizada para um herdeiro necessário, como a um filho por exemplo.
Se for apurado excesso quanto ao que o doador poderia dispor, na época da liberalidade, a doação estará sujeita a redução. Se houver várias doações a herdeiros necessários, feitas em diferentes datas, elas serão reduzidas a partir da última doação, até a eliminação do excesso.
Oportuno também ressaltar que mesmo aquele que tenha renunciado a uma herança ou que tenha sido dela excluído, deverá conferir as doações recebidas, para em caso de excesso da parte disponível do doador, repor o que tiver excedido.
Não serão colacionados os gastos ordinários com o descendente, enquanto menor, na sua educação, estudo, sustento, vestuário, tratamento nas enfermidades, enxoval, despesas de casamento, ou no interesse de sua defesa em processo crime, tampouco as doações remuneratórias de serviços prestados ao ascendente.
Se a doação tiver sido realizada por ambos os cônjuges, no inventário de cada um se conferirá por metade. Isso significa que se ambos o genitores doaram um imóvel a um filho, o herdeiro deverá colacionar 50% no primeiro inventário, e se for o caso 50% quando o outro pai falecer. De acordo com o entendimento do STJ, expresso no REsp 1390022/RS, “como a colação tem por escopo equalizar as legítimas dos herdeiros necessários, falece interesse jurídico à viúva meeira par o ajuizamento da ação de sonegados, visto que estes não serão acrescidos à sua meação”.
Vale lembrar que já publiquei na Sler, dois outros artigos correlatos a este, o primeiro no dia 25 de julho de 2022, “Herança, herdeiros e seus direitos”, e o segundo no dia 08 de agosto de 2022, “Herança de pessoa viva, cessão de direitos hereditários, venda de bem em inventário e renúncia à herança”.
Foto da Capa: Pavel Danilyuk/Pexels