Eu nasci e cresci em uma cidade colonizada por imigrantes alemães. Desde criança, fui ensinada a valorizar as heranças deixadas por aqueles que, na minha ingenuidade infantil, eu acreditava serem meus antepassados, devido ao meu sobrenome de origem alemã. Meus parentes se orgulhavam do nome Schefer, às vezes escrito Schäffer ou Schaeffer, com variações dentro da própria família. Eles exaltavam nossa origem alemã, afirmando que nossa linhagem vinha de um bisavô ou do tataravô que emigrou da Alemanha por razões que nunca ficaram claras. Seguindo o exemplo, eu também me sentia superior por fazer parte dessa história. No entanto, com o passar do tempo e após muita pesquisa, percebi que as coisas não eram tão simples e que talvez meus antepassados não fossem os heróis que me contaram.
Em 2020 escrevi um romance que tinha como protagonista uma família de imigrantes alemães e se passava entre as décadas de 1920 e 1940 em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Para escrever essa obra, eu pesquisei muito sobre a imigração e descobri que a maioria das pessoas que vieram para o Brasil naquele momento sofriam rejeição em seu país de origem, não restando a ela outra alternativa a não ser tentar uma vida nova em outro lugar. O livro ainda não foi publicado, mas as descobertas a partir das leituras realizadas me fizeram ver a história de outra maneira.
No ano do bicentenário da imigração alemã no Brasil, é importante refletirmos sobre as narrativas que nos foram contadas por tantos anos. O livro Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã, escrito por Gilson Camargo e Dominga Menezes e publicado pela Carta Editora em 2024, traz outros questionamentos pertinentes sobre esse tema. Ouvimos tanto sobre os grandes feitos deixados pelos imigrantes como se antes deles não existisse nada por aqui. No entanto, eles não foram os desbravadores destas terras. Antes de sua chegada, já havia habitantes nesta região.
Dividido em quatro capítulos, entrevistas, fotos e depoimentos, a obra Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã dá voz àqueles que foram silenciados durante o processo de colonização. Essa perspectiva desafia a visão que muitos de nós aprendemos desde cedo. Durante a leitura do livro de Camargo e Menezes, fui confrontada com a realidade de que a história da colonização alemã no Brasil é, na verdade, uma história compartilhada por muitos povos, cada um com suas próprias vivências, sofrimentos e contribuições. Quando exaltamos apenas os feitos dos imigrantes europeus, estamos perpetuando uma narrativa incompleta e, em muitos casos, injusta. O papel dos indígenas e negros na formação de nossa sociedade e como a chegada dos colonos impactou suas vidas precisa ser reconhecida. Ao dar voz a essas histórias esquecidas, a obra dos escritores gaúchos nos convida a reavaliar nosso passado e a valorizar a diversidade e complexidade de nossa história.
Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã revela as violentas disputas por terras que ocorreram entre os imigrantes e os povos indígenas que já habitavam a região. Essas batalhas não foram apenas conflitos por território, mas embates que marcaram o começo de um apagamento cultural e étnico que ainda reverbera na sociedade brasileira. Muitas vidas foram perdidas, e as consequências desse choque ainda são sentidas hoje, seja na marginalização contínua dos povos indígenas, seja na invisibilidade de suas contribuições para a cultura brasileira.
Além disso, o livro desmascara a ideia de que os imigrantes alemães não possuíam escravos. Documentos históricos mencionados na obra provam que essa prática existiu entre alguns colonos, desafiando a imagem de pureza e trabalho árduo, frequentemente associada a esses imigrantes. Essa revelação adiciona uma camada de complexidade à história da imigração, mostrando que, assim como em outras partes do Brasil, a escravidão e o racismo também faziam parte da vida dos imigrantes europeus.
Ao reexaminar a história sob essa luz, não estamos desmerecendo os imigrantes, mas sim buscando uma compreensão mais completa e justa do passado. Precisamos reconhecer que a história não é feita apenas pelos vencedores ou pelos que têm voz, mas também pelos que foram silenciados. Essa obra nos convida a reavaliar nosso passado e a reconhecer a diversidade e complexidade de nossa história. Compreender essas camadas de nossa história é essencial para construirmos uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas.
Foto da Capa: Wikipedia
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