Os nômades digitais estão a transformar a cultura das organizações, mas também de comunidades tradicionais. Isso é o que revela um estudo divulgado pelo antropólogo Dave Cook, em um artigo que compila 8 anos de trabalhos e que foi publicado no site ‘The Conversation’, apontando um êxodo de moradores locais diante da chegada desses profissionais endinheirados e sem pátria.
Só nos Estados Unidos, o número de nômades digitais é de 16,9 milhões de pessoas e outras 72 milhões estão a ponderar tornar-se um. São profissionais que transformaram totalmente seus hábitos cotidianos, passando a viver em lugares com maior qualidade de vida e/ou mais bem alinhados aos seus interesses, deixando no passado o tempo em que a atração era apenas por grandes mercados ou polos econômicos.
Nesse cenário, o fluxo dos nômades é para relativamente poucos lugares: todo mundo quer ir para Bali, ninguém cogita a Albânia (talvez o @fabiorios – mas ele não é nômade, só viajante mesmo). Buscando um clima melhor ou estar perto da natureza, por exemplo, eles fogem de diferentes problemas – trânsito, poluição, barulho, relacionamento desfeito -, mas têm em comum o fato de que não abrem mão do baixo custo de vida, qualidade da conectividade e das redes de serviços complementares, como consumo com entregas rápidas.
Assim, do dia para a noite, pequenas localidades acabam sendo transformadas pelas necessidades destes turistas de longa permanência. Airbnb’s, coffee shops, coworkings, tomam o espaço que antes abrigava vida comunitária. Casas e apartamentos são alugados e vendidos por valores ditados pelos novos moradores.
Essa nova realidade em cidades como Chiang Mai, no norte da Tailândia, Lisboa ou Ericeira, Portugal, leva à gentrificação de bairros inteiros. Com os produtos e serviços – e seus preços – voltados para pessoas com um poder de compra muito maior, só resta à população local se retirar.
Eu vivo numa típica freguesia portuguesa com pouco mais de 20 mil habitantes. Mesmo sendo uma Reserva Mundial de Surf há 10 anos, o que atrai muita gente interessada em suas ondas, Ericeira é pouco conhecida da maioria das pessoas que planejam visitar o país. Porém, o nomadismo digital trouxe para cá milhares de novos habitantes.
Números do último censo indicam que quase 4 mil estrangeiros vivem aqui há menos de 4 anos. Como há muitos europeus do norte e muitos norte-americanos, a cidade vive um conflito aberto entre o poder de compra de cidadãos de economias mais ricas e aqueles que trabalham e recebem rendimentos dentro dos patamares portugueses.
Por aqui, o centro da Vila ainda guarda bastante da cultura saloia, mas a grande maioria dos jovens terá que ir embora: o valor dos imóveis disparou. Em média, hoje, o custo com habitação compromete 76% dos rendimentos de um trabalhador local. Segundo economistas, o ideal seria não passar de 27%.
Para se ter uma ideia, alugar um apartamento de dois quartos custa em média 1,8 mil euros, enquanto o salário-mínimo português é de 740 euros. Comprar um imóvel, também é impossível para os padrões portugueses. Casas que há poucos anos estavam à venda por 100 mil euros, hoje custam mais de 500 mil.
E essa realidade não está restrita à Ericeira: Lisboa, Porto e outras tantas cidades do norte ao Algarve atravessam a mesma realidade. Para mitigar os impactos no mercado imobiliário, o governo já tomou medidas de proteção contra agentes especuladores. Porém, isso tem reflexos nos serviços ligados ao turismo, o que vem gerando enorme repercussão e conflito, com protestos de ambos os lados.
Parece que dentro dos desafios já percebidos para 2023, os nômades digitais precisarão enfrentar mais um: não serem percebidos como nocivos àqueles que os acolhem.
*Gentrificação é o processo de mudar o caráter de um bairro/localidade através do influxo de residentes e empresas mais abastados. Veja mais em Wikipedia.
Link:
Mapa interativo da relação média salariais e aluguéis em todas as cidades de Portugal.
https://www.publico.pt/interactivos/mapa-rendas-onde-consigo-viver/