Em meio à pandemia do coronavírus, enquanto alguns estavam “passando a boiada”, aproveitando a ocasião para desestruturar o sistema ambiental, outros recorriam à arte e cultura para preencher os dias de isolamento. Entre os fenômenos editoriais desse período de distanciamento social, está a obra de Ailton Krenak.
O líder e pensador indígena já era conhecido por seu discurso na Assembleia Constituinte, quando o jovem de pouco mais de vinte anos, vestido todo de branco, pintou o rosto com a tinta preta de jenipapo e levou a indignação dos povos indígenas para a tribuna denunciando as contínuas e sistemáticas agressões a seus direitos.
Naqueles dias pandêmicos, em que estávamos acossados por um vírus mortal, nós parecíamos estar efetivamente vivendo o fim do mundo, a obra “Ideias para adiar o fim do mundo”, que juntava duas palestras de sua autoria, seduziu muitos leitores.
Krenak chamou atenção para a necessidade de escutarmos as culturas que estão mais vinculadas à natureza, como os povos indígenas, que veem a si mesmos como parte do Planeta, tratando as pedras, montanhas e árvores como pessoas, como sendo parte da família.
Nessa cosmovisão, a identidade e o pertencimento estão vinculados ao território – que deve ser preservado. Quando pessoas ou empresas chegam à floresta para “devorá-la”, extraindo tudo que tem utilidade econômica e deixando um rastro de destruição, isso é considerado um desrespeito, mas também é chamado de progresso pelos brancos.
Mas a relação harmônica com o Planeta não esconde o realismo de Krenak que adverte: “Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. Os nossos mundos estão todos em guerra.”
Essa guerra começou há mais de 500 anos, com a chegada da colonização portuguesa, e continuou com os bandeirantes e seguiu após a Independência e da Proclamação da República. Os povos indígenas foram cada vez mais sendo empurrados floresta adentro em sua luta por sobreviver e pelo direito de ser e viver de modo diferenciado, segundo sua cultura em ato de resistência à homogeneização social e cultural.
Anota que o homem branco sempre atuou de forma a destruir os modos de vida tradicionais dos povos indígenas, pois a “máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre as populações e o conjunto da sociedade brasileira”.
Flashes dessa guerra foram vistos recentemente, quando as descobertas da fome e das doenças, que estavam dizimando os ianomâmis em Roraima, tornaram-se públicos e foram expostos, junto com a ação dos garimpeiros e um discurso político, local e nacional, que legitimava esses ataques.
O novo campo de batalha onde se desenrola essa guerra é o jurídico, em torno de um conceito chamado de marco temporal. Essa tese jurídica fixa a data da promulgação da Constituição em 1988 como marco para a demarcação de terras indígenas. Segundo ela, somente poderão ser demarcadas terras já ocupadas por indígenas em 05 de outubro de 1988 ou que já estivessem sendo disputadas naquela data. Do ponto de vista jurídico, a coluna de Marcelo Terra Camargo, aqui na SLER, explica de forma lapidar a questão.
O combate opõe principalmente indígenas e ruralistas em disputa por terras e pelo direito de explorá-las economicamente. Mais uma batalha foi travada na Câmara dos Deputados, quando foi aprovado projeto de lei abraçando com fervor a tese do marco temporal, não só com vistas ao futuro, mas também para declarar a nulidade das terras já demarcadas em desacordo com essa condição e dá à União a possibilidade de retomar terras já demarcadas.
A proposta cria formalidades que emperram o curso dos processos de demarcação e ampliam as possibilidades da realização de empreendimentos econômicos e da exploração de recursos naturais, inclusive com a participação de pessoas alheias às comunidades envolvidas, que também perdem o direito à consulta prévia. Temos aí, a relativização do direito ao território e uma troca dos beneficiários de possíveis ganhos econômicos: saem os povos originários, entra o “homem branco”.
Mas a principal batalha que será travada, como bem anota a coluna do Marcelo Terra Camargo aqui na SLER, referida acima, será no STF, que volta a discutir, essa semana, se a tese do “marco temporal” está de acordo, ou não, com a Constituição.
A decisão mostrará se a guerra contra os povos indígenas ganhará um novo patamar ou se teremos um freio à destruição de seus territórios e vidas. Voltando à arte, teremos que decidir se vamos dar o suporte material à vida dos povos indígenas ou, nos dizeres de Renato Russo, “vamos vender todas as almas de nossos índios num leilão”.
Foto da Capa: Ailton Krenak – Wikipedia