No primeiro, primeiro dia, eu nasci. Tava de boa na lagoa e minha bolha explodiu e, em um segundo, estava sendo puxado pela cabeça, apavorado, para um mundo de luzes brilhantes. Lá se foi minha primeira casa, quentinha, aconchegante, com comida e bebida farta, onde eu podia dar cambalhotas na gravidade zero. Bateram na minha bunda! Cortaram meu umbigo! Selvagens!
Então me enrolaram e me colocaram num sovaco quentinho que depois fui descobrir, era da minha mãe. Quantos vultos! Me passavam de mão em mão feito uma peteca! Todo mundo falava comigo com uma voz infantilizada. kkkk
Então veio o primeiro dia do cocô. Andava estufado, alguma coisa estava acontecendo, me sentia mal, tinha cólicas, parece que o leite da teta não tinha mais para onde ir. Daí aconteceu: primeiro um peido bem barulhento, mas sem cheiro ruim (no fundo eu acho que todo mundo simpatiza com o próprio peito!), e aí saiu aquela montanha de merda, todo mundo comemorou. Depois de algumas semanas, ninguém mais comemorava, bastava um cocozinho que ficavam discutindo quem me trocava. Zero coerência!
Daí teve o primeiro dia que soube que meu pai era meu pai. Deveria ter deduzido antes, ele estava sempre lá, rindo, me carregando, dirigindo o carro, era o mais presente depois da minha mãe. O jeito abobado que ele olhava, rindo de qualquer besteira que eu fizesse, só podia ser ele. Aquele homenzarrão fazia cavalinho comigo. Que cena. kkkk
Conheci o bico e logo simpatizei com ele, éramos uma dupla insuperável, estava sempre com uma teta na boca, e isso me acalmava. Nem sabia que se podia ter medo do escuro, eu e meu parceiro estávamos prontos pro que desse e viesse. Meus pais pareciam adorar ele. Daí tudo mudou, começaram aquela pressão dizendo que eu ia ficar com a boa torta (quem é Noel Rosa?) e que não ficava bem para um “gurizão” ficar chupando bico.
Gurizão???? Pra tudo eu era neném, mas pro meu amigo eu tinha ficado velho. Então mamãe cortou um pedaço dele, dormi com meu amigo amputado dentro da boca, triste, passando a língua naquele vão de borracha. No dia seguinte mais um pouco. Óh mundo cruel!!!! Parei de usá-lo de dia, pensando que assim poderiam ter um pouco de comiseração com meu biquinho. Passeando no centro vi um caminhão de bombeiro: era vermelho, tinha as mangueiras de borracha, compartimentos para colocar água e uma escada que espichava. Meus pais me subornaram da maneira mais vil: troquei meu amigo aleijado pelo caminhão novo em folha!
Daí veio meu primeiro dia sem o bico, e me descobri uma pessoa má, esquecido do meu companheiro enquanto salvava meus índios e mocinhos dos incêndios imaginários com meu fantástico caminhão vermelho, mas, como até os brutos choram, à noite lembrei tantas coisas que vivemos enquanto as lágrimas molhavam o travesseiro. Chorei em silêncio com medo de perder meu caminhão por descumprir o combinado.
Daí teve o primeiro dia da creche, no começo achei uma boa ideia, ganhei mochila, lancheira e até um tênis novo, e ouvi maravilhado que ia brincar com novos amiguinhos, o que soava bem para quem morava em um prédio antigo sem nenhuma infraestrutura no centro de Porto Alegre. A mãe tava meio nervosa. O pai não sei, ele saia pra trabalhar e só chegava de noite. Confesso que dei um show! Quando a mãe tentou ir embora, eu me agarrei nas grades chorando para que as professoras não me levassem pra dentro. Apesar dos meus gritos, ela partiu, já que nos anos 70 ainda não tinham inventado a empatia. De verdade, a situação nem era tão grave, tanto que mal ela virou a esquina, eu já estava enturmado brincando, foi só pra valorizar a separação.
Num sábado normal a mãe mandou eu me arrumar rápido pra sair depois de falar no telefone, ela estava chorando, meu pai estranho, fomos em silêncio no carro, sabia que era melhor eu não falar, nem sabia por que, mas era melhor eu não falar. Estávamos indo pra casa da vó em São Jerônimo, mas não era Páscoa, nem férias de julho. No caminho ela me disse que a vó tinha morrido. O vô eu não tinha conhecido porque morreu logo depois que eu nasci.
Daí tive meu primeiro dia de morte. No começo nada parecia fazer sentido. O mundo sempre foi eterno. E as minhas Páscoas. Minhas férias de julho? E Capão da Canoa no verão? E as garrafinhas de Coca-Cola pequenas que vinham numa caixinha de madeira? Não era possível!!! O vazio da casa vazia da vó me deu uma dor na boca do estômago. Tudo estava lá, menos a minha vó. Tinha o cheiro dela, mas não tinha ela. Quando a vi no caixão, chorei por ela, chorei pelas minhas pescarias com minhoca do pátio no Rio Jacuí; chorei pelas goiabas; chorei pelos butiás do butiazeiro do lado do balanço; chorei pelo bife frito no fogão a lenha; chorei pelos banhos de calha furada nas chuvaradas de verão…
Daí tive meu primeiro dia sem meus pais juntos. Estava no banheiro de azulejo escuro do apartamento no centro quando a mãe entrou e disse que o pai ia embora, pois eles não estavam mais se dando bem, e seria melhor pra todo mundo. Ele continuaria me vendo e nada mudaria pra mim. Ele cumpriu fielmente o prometido, saía do banco e jogava bola comigo no corredor do apartamento e sempre ganhava. Íamos no buffet da AABB nos domingos e eu passava o final de semana na quitinete dele na João Pessoa, que tinha janela pro fosso do prédio.
O pai me comprou uma excursão pra Disney quando eu tinha 15 anos, com voo pela Aerolíneas Argentinas. Teve reunião no Rosário para informações sobre a viagem. A mãe comprou as roupas de verão porque era julho e também uma mala nova (ainda não tinham inventado a rodinha). A mala era azul e branca. Como o pai ia me levar no aeroporto, fui pra casa dele uns dias antes, já no apartamento do Cristal em Porto Alegre. No dia seguinte saiu na televisão que a Aerolíneas tinha entrado em greve. Não viajei. Fiquei na casa do pai aquela semana sem avisar para minha mãe. Quando no final de semana voltei pra casa, a minha mãe tinha descoberto que eu não viajei e não tinha voltado. Meu quarto não existia mais, foi transformado em uma sala de televisão. Minhas malas estavam na porta. Ela nem falou comigo. Nem eu falei com ela nos 3 anos seguintes. A mãe pegava pesado.
No primeiro dia que sai da casa da minha mãe, eu carreguei as malas chorando por detrás do ray-ban azul e entrei em silêncio no Gol cinza do pai. Meu pai não falou nada, ele nunca falava nada, mas sempre estava lá. Meu quarto provisório virou definitivo. Foi um julho solitário escutando The Smiths no 3 em 1 enquanto não voltavam as aulas no Julinho. A casa do pai tinha 2 pratos fundos, 2 garfos, uma faca e um videocassete com controle remoto de fio. Quando voltaram as aulas, o pessoal do colégio ia lá pra casa ver filmes. Passávamos no super do shopping João Pessoal, pegávamos o ônibus Cruzeiro do Sul na frente do Julinho e íamos comer a massa com sardinha da Patrícia Carneiro servida na gaveta da geladeira (tínhamos que revezar nos poucos talheres!). Um dia o pai chegou mais cedo e teve de ir procurando brechas no chão entre os adolescentes pra chegar até o quarto. Ter um vídeo cassete em 1987, te fazia uma pessoa famosa no colégio público.
Daí teve o primeiro dia de morar junto com a minha mulher, que eu tinha conhecido no carnaval de Laguna. Alugamos um apartamento na Clemente Pinto. Ela trouxe as coisas de Laguna. Eu achei maravilhoso o apartamento, com churrasqueira na sacada, no terceiro andar de um prédio sem elevador. Que frio na barriga. Quanta ansiedade. Estava tão feliz. Fiz um escritório no anexo da sala. Levava a comida dela pro escritório em potinhos. Nunca tinha amado tanto. Havia perfeição em todas as coisas, no vinho JP suave de garrafão, nos churrascos antes dos jogos do Internacional. Daí ela adoeceu e minha vida desmoronou.