Um velho e querido amigo, bom goleiro de futebol de salão nas peladas no Clube Macabi e na PUC-SP, sujeito com um coração de ouro, tinha uma boa e engraçada desculpa quando era confrontado à mesa por ter comido 60% da porção de batatinhas, deixando os demais 40% para os outros dois amigos que dividiam a mesa:
– Eu até que sou uma boa pessoa, mas o meu estômago não presta!
Era impossível ficar bravo com Sérgio Plut, o Pluto. Conheci poucas pessoas na vida com tanta generosidade e carinho pelos amigos.
O jeito era pedir uma nova porção e, quando ela chegasse, dividi-la rapidamente em três partes iguais, colocando cada qual no respectivo prato, para que o estômago do nosso amigo não sobrepujasse seu cérebro e coração tão bem-intencionados.
Lembrei-me disso ontem, quando outro notório glutão (este que aqui escreve) estava pela primeira vez na tradicional sorveteria Royal, fundada em 1955, no bairro do José Menino, em Santos.
Maria e eu fomos a pé. A distância de ida e volta a partir do nosso apartamento, ao final do canal 5, quase na “fronteira” com o 6, é de pouco mais de 10 km. Mas como caminhamos antes em direção à Ponta da Praia, canal 7, por achar o caminho muito bonito, nosso percurso total foi de 13,7, o que sempre faz a gente poder comer mais e sem sentimento de culpa.
Estávamos sentados em um dos poucos bancos na parte externa da singela casa, dividindo um delicioso sorvete com três bolas imensas – de brigadeiro, cupuaçu e iogurte com frutas vermelhas. Isso depois de ter experimentado uma provinha de todos os sabores que a sorveteria tem.
Bem, todos não é o termo correto.
Provamos quase todos.
– Os diets não! É que não quero engordar – disse à simpática funcionária da loja.
Mas voltemos à cena.
Maria e eu estávamos sentados em um dos bancos.
De repente, um homem de bicicleta parou em frente à sorveteria.
Olhou, olhou, pensou, desceu da bike, encostou-a junto ao poste e deu dois ou três passos para a frente.
Era um homem magro, negro, devia ter lá seus 45 anos. Vestia roupas simplórias, quase tão velhas quanto a própria bicicleta. Mas eram limpas, assim como a própria bike. Parecia, pelos trajes, ter acabado de sair do trabalho.
Hesitou mais um pouquinho e finalmente entrou na sorveteria.
– Boa noite – disse timidamente para mim, para a Maria e para uma única família – pai, mãe e um filho – que curtiam seus sorvetes no banco em frente ao nosso.
Parecia pedir permissão para entrar.
Chegou no balcão e perguntou:
– Como é que isso funciona?
Explicaram para ele que o sorvete de uma bola tem, na verdade, duas bolas e que ele pode pedir com até dois sabores.
Pouco antes, quando deram a mesma explicação para mim e para a Maria, não entendi direito e perguntei:
– Dois sabores em cada bola?
– Não… não… dois ao total – disse a funcionária.
Mas ele não perguntou nada. Olhou para o quadro na parede e escolheu os dois sabores. Chocolate e mais alguma outra coisa, que não entendi.
Depois de pagar, pegou o sorvete e saiu da loja. Ficou quase encostado no poste em que estava a bicicleta e começou a comer, vagarosamente. Parecia saborear cada pedaço.
Tudo isso que contei eu vi, mas – glutão que sou – prestei mais atenção ao meu sorvete do que à cena que se apresentava. Vi sem enxergar direito.
Maria comentou comigo:
– Você viu que pessoa mais humilde?
– Sim e não. Fale mais – disse para minha esposa.
– Ele nem provou nada. Nem perguntou as opções. Ouviu, escolheu, pagou e foi lá para fora comer. Em pé. Nem se sentou aqui, ao nosso lado, em um dos bancos.
– Fiquei olhando para o sujeito, que não tirava os olhos do gelado.
Logo que terminamos o sorvete, Maria começou a fazer algumas fotografias do local e saí rapidamente, em direção ao sujeito.
– E aí, amigo?
Eu ia prosseguir a frase, mas vi que não me olhou diretamente nos olhos, e sim de soslaio. Desconfiado. Talvez intimidado.
Tentei abrir meu melhor e maior sorriso e caprichar na entonação simpática da voz:
– O que estás achando do sorvete?
Ainda de cabeça meio para baixo, mas nem tanto, respondeu:
– É delicioso. Estou adorando.
– Do que você pediu? Chocolate, mais o que?
Ele respondeu:
– E morango!
Começamos a conversar. Perguntei se era a primeira vez que vinha na casa. Ele disse que sim e também perguntou sobre a gente. Contamos que também era a nossa primeira visita, que viemos caminhando desde o canal 7 e que somos novatos em Santos.
Mais solto, contou que vive em São Vicente, mas geralmente trabalha, com obras públicas, em Santos, cidade onde nasceu.
Tomei coragem e perguntei:
– Posso te dar um toque?
– Sim, respondeu, quase de frente, mas acho que sem qualquer desconfiança.
– Tu sabias que podes pedir para provar os sabores antes?
Ele manifestou surpresa. E respondeu que não.
– Nós provamos todos os sabores antes de escolher os três. Foi tanto sorvete que quase só não fomos embora, já que nem precisávamos mais de nada, porque não seria elegante e honesto.
– E como é que a gente faz para experimentar?
Expliquei:
– É só pedir. A guria pega uma colherinha e serve o sabor que tu pediste. Se pedes para experimentar outro sabor, ela pega outra colherzinha e faz o mesmo. Só não precisa exagerar como eu e pedir todos os sabores. Pedir alguns, tudo bem…
Acrescentei, plagiando meu amigo:
– Eu sei que é feio e até que sou uma boa pessoa. Mas meu estômago não presta…
Ele sorriu saborosamente.
E aí ergueu a cabeça, olhou-me pela primeira vez olhos nos olhos e disse:
– Sabe, acho que vou fazer isso sim, da próxima vez. É que sou pobre, de uma família muito simples. E nós aprendemos desde cedo a pegar a comida, pagar e ponto final. Sem faltar muito, sem sorrir muito.
E prosseguiu:
– Quando minha mãe, depois de trabalhar a semana inteira para nos sustentar, nos levava para tomar um sorvete ou comer um pastel, ela ensinava que nós, os filhos, sempre temos que sair em silêncio e continuar sem fazer muito barulho no lado de fora. Isso para mostrar que a gente tem boa educação. E para mostrar que somos pessoas de bem.
– Minha esposa e eu teríamos ficado honrados de conversar contigo enquanto curtíamos o sorvete. Oxalá a gente se encontre de novo por aqui ou em algum outro lugar – falei.
Ele abriu um sorriso e estiquei a mão direita para a despedida.
E fiz questão de apertar forte, como deve fazer um cronista de 63 anos ao se despedir de um trabalhador braçal!
Maria e eu já estávamos alguns metros adiante, mas aí pensei: “Digo ou não digo”.
Voltei até ele, que se preparava para pedalar em direção a São Vicente, e disse:
– Em alguns lugares talvez não queiram servir para você todas as provinhas que dão para a gente. Espero que nunca aconteça isso. Mas neste país muitas vezes o trabalhador não é respeitado como deveria. Se isso acontecer, saiba que é preconceito e espero que tu nunca deixes de pedir para provar e sentar nos banquinhos se tiveres vontade.
– Eu pedirei sim. E sei que hoje a minha mãe ficaria orgulhosa, porque somos todos trabalhadores.
Ele nos olhou profunda e ternamente. Trocamos um novo e forte aperto de mãos, mas com os corações amolecidos.
Maria e eu voltamos em silêncio, caminhando na areia da praia, os cinco km até nosso edifício.
(E esta crônica termina apenas com o som das ondas do mar.)
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Foto da Capa: Acervo do Autor