Ensaio como lugar de interpretação
Este texto finaliza meu artigo “Os seis lugares do ensaio” e visa dar conta dos dois últimos elementos que vejo como importantes na sua elaboração: que o ensaio seja o lugar de nossa interpretação e que ele tenha… alma! Já falamos que escrever sobre a experiência é um ato revolucionário. Num mundo massificado, expressar algo e ter uma opinião é um valor. Mais ainda é exteriorizá-lo no universo da cultura do cancelamento. Escrever é mais fácil do que aceitar críticas. A escrita é afetada por elas por ser narcisista. Assumimos um risco quando expressamos a opinião escrita, pois este espaço é muito diferente da sala de aula. “O que é dito na sala de aula fica na sala de aula”, foi a primeira regra do currículo oculto, expressão de Tomaz Tadeu da Silva, que aprendi nas escolas onde exerci magistério. Isso era uma estratégia para ampliar o vínculo com os alunos, criar uma rede de solidariedade – e se isto é possível entre aluno e professor nos tempos atuais de divisão política – que dava base à solidariedade de classe. Lembro-me do estranhamento de ver que na sala do professor falava-se de tudo, mas raramente de como eram nossas aulas. E quando falávamos, eu achava esquisito que nenhum professor era inseguro, nenhum tinha dúvidas. Era parte daquele cenário que cada professor era o senhor em sua disciplina, tinha uma imagem a manter e, portanto, não havia espaço para questionamentos. Eu anotei essa experiência em meu estudo de mestrado e a vi na prática profissional de escola privada. Nas escolas que visitei, os professores faziam da mesma forma. Não éramos capazes de interpretar uma situação de ensino nossa e dizer: eu errei.
Quando damos uma aula, fazemos escolhas. É isso o que nos torna professores, e também, de certa forma, como diz duCemin, artistas. São nossas opções por ênfases de conteúdos, métodos de ensino, problemas de investigação que fazem com que uma aula seja o que desejamos que seja. Quando escrevemos sobre essas experiências sob a forma de um ensaio, o que fazemos é trazer a público o que fazemos, conversamos através do texto escrito com outros professores, coordenadores, comunidade escolar ou qualquer ator social que leia o que escrevemos para interpretar seu significado. Por essa razão, é natural que muitos professores ofereçam resistência a escrever. Interpretar implica em um julgamento. Mas não há o que temer: “Podemos fazer arte, e chamar nosso trabalho de arte, sem dizer que é brilhante, ou mesmo bom. Podemos comunicar coisas através dessa arte sem dizer algo especialmente intelectualizado ou revolucionário. Podemos ser desastrados com nossas ferramentas e clichês em nossa expressão, mas pode ser arte do mesmo jeito. Pode dizer algo da mesma forma” (p. 34). O autor quer dizer que não precisamos fazer uma aula típica dos grandes mestres para escrever sobre ela e interpretá-la. Não funciona assim, porque simplesmente damos aulas: perfeitas ou imperfeitas, melhor um dia do que no outro. Escrevemos sobre suas diferenças, sobre se atingiram seus objetivos ou não, independentemente de sua qualidade pedagógica.
Interpretamos porque queremos aprender com a experiência. Pode ser a pior aula de nossa vida, mas o fato de nos dispomos a analisá-la, de assumir uma posição descritivo-analítica, faz toda a diferença. “Nosso trabalho nunca irá se aprimorar se sentarmos e esperarmos. Nem jamais se tornará mais intenso enquanto continuarmos afirmando que não temos nada a manifestar” (duCemin, idem). O ensaio é um ato interpretativo, ele não é a prova em um julgamento moral da qualidade de nossa aula. Se não tivemos sucesso em produzir nossa melhor aula, talvez tenhamos sucesso em interpretar as razões de seu fracasso. O que o ensaio faz é apresentar da melhor maneira o que fizemos, as razões e os percalços que tivemos. Nossa liberdade é muito maior no texto escrito do que na cena de aula. Na escritura, interpretamos com os instrumentos que estão ao nosso alcance; na sala de aula, não somos donos do processo, interagimos com os alunos e na escola, com a direção e o corpo de ensino. Podemos refletir sobre uma aula do passado que foi um fracasso para que a aula seguinte seja melhor; podemos refletir sobre uma aula de sucesso e isso não acrescentar nada a nossa prática, mas poderá auxiliar a prática de outro professor. Escolhemos as aulas, escolhemos a escrita, escolhemos interpretar. Isso é parte de nós. Qual parte?
O ensaio como lugar da alma
Quando afirmei que a escrita do ensaio deve ser vista como obra de arte, não estava brincando. Por isso, busquei referências do campo artístico e não da metodologia científica, linhas de pensamento que organizassem o modo como construí minhas obras. A obra A alma da fotografia – o fotógrafo como artista criador, de David duChemin me ofereceu insights para organizar minha experiência. Humanista e fotógrafo do mundo, duChemin é autor de diversos livros sobre a arte e ofício da fotografia. Ainda que eu mesmo não seja fotógrafo profissional, com o advento dos celulares, como todo mundo, o aparelho se tornou presente em minha vida. As imagens têm um sentido em nossa vida. Sabemos que, desde os estudos de Walter Benjamim, especialmente Passagens, da íntima relação da fotografia com a realidade, “a fotografia é um meio de apropriação do real sem retoques”, na expressão de Márcio Seligmann-Silva.
O que fazemos com o ensaio não é exatamente isso, nos apropriarmos da realidade do ensino de professores para expressá-la sem retoques? duChemin caracteriza as bases da construção da fotografia como eu vejo a caracterização das bases da construção de um ensaio, ainda que isso possa alarmar os cientistas de plantão. É que professores ministram aulas, reúnem planos de ensino, realizam oficinas e fazem avaliações. Você os olha e, com a escrita, faz imagens de sua prática, quase como se fossem fotografias. Alguns ministram a mesma aula do mesmo jeito durante décadas, como um professor que tive no curso de história cujas folhas de papel de almaço que escreveu o conteúdo já estavam amareladas pelo tempo. Eu mesmo anotei todas as minhas aulas em textos: algumas eram boas, outras eram apenas medianas. Dependendo da disciplina que ministrasse, minhas aulas podiam naquele ano gerar um livro. Isso é impressionante se pensarmos nas dezenas de aulas que os professores ministram em uma escola em relação a sua possibilidade de publicação. Isso nos diz que temos uma imensa vontade de dar aulas, mas uma barreira para transformar nossas experiências em texto escrito.
Isso aconteceu muitas vezes porque o professor se sente insatisfeito com o resultado de uma aula. Então, por que então escrever sobre ela? Às vezes é o professor que está desmotivado, às vezes é o aluno. O problema da ausência do desejo de escrever é a mesma da ausência da vontade de fotografar de que fala duChemin: “deixam a desejar porque lhes falta alma” (duChemin, p. 8). Sua resposta ao ruído do mundo que afeta sua arte deveria ser a mesma dos professores: somente com mais fotografias, ou mais escritos, poderemos superar a banalidade de nossa vida escolar e obter a alma de nosso processo de ensino “somos nós que acrescentamos a sensibilidade, a perspectiva e a poesia” diz duChemin.
Tão fascinante como é a câmera fotográfica para o autor, deveriam ser as aulas para o professor. Ver emergir a participação do aluno a partir de uma folha de plano de ensino que o professor faz é um pequeno milagre. Mais que registar os procedimentos de um professor em sala de aula, um ensaio deve, como uma imagem, revelar algo profundo do sistema de ensino. “É muito mais difícil revelar nossa essência, assumir riscos, criar algo que transmita nossas impressões e nossa humanidade” (duChemin, p. 9). Temos uma imensa capacidade de criar histórias em sala de aula para despertar a imaginação do aluno, mas temos imensa dificuldade de registar essas experiências. O fotógrafo trabalha com o tempo e a luz como matéria-prima. Qual a matéria-prima do professor? As experiências de sala de aula, os instantes em que o aluno interage, sorri e dá retornos ao trabalho do professor, os momentos de alegria e contentamento na troca de conhecimentos que entre si fazem. O conhecimento é o meio; a experiência, o sentido. Assim como a fotografia compartilha o instante de um olhar feliz do fotógrafo, o ensaio compartilha os instantes felizes no universo de ensino.
Escrever bem não faz milagres para professores, como podem sugerir os manuais da boa escrita – “precisamos ter o que dizer”, diz duChemin. O ensaio nos ajuda a falar como a fotografia faz o autor ver. É ele que diz “olha só o que aconteceu em minha aula” e, por isso, o ensaio é a fotografia de determinados momentos de nossa prática. Existe nosso conhecimento técnico, mas existe nosso talento, como nos colocamos em sala de aula, os momentos que escolhemos e excluímos. Esta é a alma do professor. Nos termos de duChemin, nossos melhores relatos estarão nos momentos em que enxergamos algo que o restante de nossos colegas professores não percebeu. Só podemos escrever sobre nossas experiências se estivermos presentes.
Para escrever é preciso inspiração. DuChemin tem seus mestres fotógrafos como Sebastião Salgado e diz que poderia ter feito as fotos que fizeram, mas que não as fez “porque não estava lá”. O professor está. Ele não precisa fazer a descrição de suas experiências de ensino como os grandes pedagogos fizeram, mas ele pode fazer a melhor descrição que pode do que vê. Isso serve para fortalecer o objeto único que o ensaio possibilita registrar e que é a nossa visão. Como fotógrafos, tudo o que professor quer fazer são “aulas melhores”, como aqueles querem “fotos melhores”. É que nossas aulas nos movem, são nossa forma de arte, nos fazem pensar. Sem nossas aulas, nossa alma estaria incompleta. Por quê?
Na concepção aristotélica, alma e corpo formam uma substância única. Se podemos inferir a partir de Aristóteles o que é a alma de um professor, ela é aquela capaz de assimilar certas substâncias exteriores que são a satisfação de seus alunos com seu processo de ensino. É disso que se alimenta o professor. É a primeira faculdade da alma, a nutritiva, de que fala Aristóteles. A alma se alimenta de algo. Ele fala em outra faculdade, a sensitiva, que se expressa através dos sentidos. Você ouve a participação de seus alunos e isso é motivo de contentamento. Finalmente, Aristóteles fala da terceira faculdade da alma, a imaginação. Você vê que a aula é a realidade daquilo que você imaginou. E sua alma fica feliz por isso. Você precisa dar boas aulas para sua alma ser feliz.
A conclusão é que publicar livros a partir de ensaios produzidos por coletivos de professores é algo ambíguo. Eles são coletivos, pois representam a produção de uma escola num determinado contexto. Os professores vivem sua escola no contexto da democratização das relações de ensino ou não, da cultura escolar participativa ou não. Mas eles escrevem individualmente cada texto. Quando o professor escreve, é da sua experiência disciplinar que ele fala e que é variável. A sua volta, há outros professores que compartilham a experiência de ensino na mesma escola, mas são diferentes. É aí que está o ponto final desta primeira parte. Podemos fazer nosso trabalho com anotações da repercussão entre pares de nossas aulas, anotamos suas impressões, vemos suas reações e as registramos em um diário. Mas o desafio de levar nossa experiência de ensino anotada para outros públicos é que exige que se saia, em algum momento, da nossa própria visão e se vá adiante para captar, ao menos fragmentariamente, como é a visão daqueles com quem interagimos. Se falamos das relações de professores com servidores, alunos, merendeiras, faxineiros, pais, de alguma forma queremos ser capazes de captar sua visão sobre nosso trabalho. A estrutura do ensaio é exatamente a organização dessa exposição de visões, que inicia na do próprio professor, mas que quer ir mais além no que puder registrar das outras visões de que somos capazes de anotar e de fazer. Seja a partir do que você pode anotar em seu diário após um encontro, das anotações posteriores que fez a partir da recordação do que um interlocutor falou, mesmo que isso seja aproximado e fragmentado, é melhor do que não tentar. O ensaio é estruturado para mostrar nossa interpretação organizada. Você descreve nele situações de ensino visando a um propósito, você relata como se estivesse produzindo uma fotografia, você une suas observações, visões de mundo e emoções num todo coerente e lógico que explica o movimento do ensino. É esse o caminho que situa você entre descrever o processo de ensino e apreender a alma dele.
Bibliografia
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A teoria da fotografia em Walter Benjamin na era da síntese técnica de imagens.
BECKER, Howard. Truques da Escrita. São Paulo: Zahar, 2015.
duCHEMIN, David. A Alma da fotografia: o fotógrafo como artista criador. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017.
FINKIELKRAUT, Alain. A derrota do pensamento. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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