O ensaio como lugar do hábito de escrever
Este texto segue-se a Ferramentas para escrever (Sler, 5/8), parte de um conjunto que objetiva orientar grupos de professores de nossas escolas na construção de livros sobre suas experiências de ensino – aqui é dividido em três partes. Depois que passamos do estágio em que sabemos os argumentos que queremos defender em nosso ensaio, segue outro, o da sua estruturação propriamente dita. Escrevo com os olhos voltados, ao mesmo tempo, para o que quero escrever e a literatura que tenho à disposição.
No ensaio, se cruzam diferentes perspectivas. Na minha experiência, ele é o lugar para onde confluem determinados hábitos, técnicas, perspectivas, linguagem e interpretação. É o lugar onde colocamos nossa alma. Eu não diria que sou o mesmo menino que na infância começou a escrever inspirado por uma colega na sala de aula; mas eu diria que agora dei um passo a mais, sou capaz de dialogar com aquilo que leio e anotar minhas conclusões. Eu sou através de meus ensaios. Nesse sentido, deixei de ser criança para ser um adolescente na mesa do bar enquanto escrevo.
De onde veio isso em mim? Agora, a lembrança é a seguinte. Como muitos jovens de minha geração, minha adolescência foi marcada pela passagem à vida adulta no meio de um grupo de amigos. Como todos, tive minha “tribo”, mas éramos comportados, não era dessas de ir para a baladas. Eu ia com meus amigos para o antigo bar do Beto, que não existe mais, na esquina das Ruas Venâncio Aires e Vieira de Castro. Comprávamos o jornal Folha de São Paulo – à época ainda um jornal de centro-esquerda – que no fim de semana era bem grande e pronto, tínhamos assunto para toda uma noitada. Não que fôssemos todos “cdfs”, mas apenas, como ainda sem namoradas, éramos curiosos e ocupávamos o tempo livre descobrindo o mundo através das páginas dos jornais. De certa forma, dialogávamos com eles.
Esse hábito ainda me caracteriza. Eu realmente gosto e vejo como importante ter um interlocutor enquanto estou escrevendo. Eu ainda acho importante adquirir o hábito de escrever como o de ler um jornal na mesa de um bar. É algo que precisa ser cultivado. A metodologia científica diz que devemos situar o objeto que escrevemos no que se chama “estado da arte” de um determinado campo de conhecimento. Na universidade isso significa a revisão de literatura, o que sempre termina por se tornar outra das tarefas impossíveis de se fazer: afinal, quem pode e tem tempo de fazer uma revisão de literatura completa? Ler tudo sobre um campo de conhecimento? Essa tarefa é impossível não apenas porque se produz demais sobre qualquer tema que se escolha, como também que, se incluirmos a literatura internacional, pouco tempo ou espaço vai sobrar para escrever o que você realmente quer escrever. A única chance que temos de nos aproximar de sua realização é a a realização da leitura e da reflexão todos os dias. Ler e escrever deveria ser tão comum como se lava os dentes.
Minha opção de diálogo com um autor e uma obra é, portanto, o reconhecimento de minhas limitações. Eu poderia aproveitar as inúmeras revisões de literatura sobre um tema disponível em artigos de períodos como os catalogados na plataforma Scielo, mas prefiro este caminho porque ele me lembra um pouco o dos diálogos filosóficos da antiguidade onde um discípulo pergunta a um mestre as grandes questões. Novamente, essa noção traz em si o conceito de caminhada que, como já referimos, é algo que se faz com alguém em uma direção. Falarei dos autores e obras que guiam minha trajetória nos próximos textos. Importa agora indicar que faço ensaios sempre dialogando com outros autores que li e gostei, que conheço, que não são muitos, mas como os amigos, são selecionados como estivéssemos com eles naquela mesa de bar.
Quando reviso as obras sobre a arte de escrever de minha biblioteca, o faço para ver o quanto minha história de escrita se aproxima ou se distancia de outros autores que admiro. Além dos que já mencionei, gosto do ponto de partida de Howard Becker em sua obra Truques da Escrita (Zahar, 2015) porque compartilho com ele a ideia de que os problemas dos escritores com a escrita não derivam dos problemas ou deficiências que os autores possuam, mas porque são devidos a outra coisa, “as dificuldades que você enfrenta para escrever não são culpa sua nem resultado de uma inabilidade pessoal. A organização social na qual você escreve está criando essas dificuldades para você” (Becker, p. 8). Assim, os problemas da escrita de professores são problemas da organização social em que vivem, da escola e de sua formação.
Isso não é paradoxal? Acreditamos que, ao contrário, estamos justamente naquela instituição que mais condições nos daria de escrever. Acreditamos que, se passamos por uma universidade, esses problemas foram sanados. Aqui, a questão é justamente o tipo de escrita e texto a que nos acostumamos em seu interior: relatórios, pareceres, provas, planos de ensino, tudo isso é um ponto de apoio para o ensaio, mas não é um ensaio. Se não somos o professor de disciplinas das humanidades da escola, é provável que a palavra escrita não seja tão familiar assim. Minha experiência de professor de escolas de educação básica foi diversa: já disse que tive a inspiração de meus professores de cursinho, Voltaire Schilling e Luiz Roberto Lopes, de jamais entrar em sala de aula sem um texto escrito, método que me acompanhou durante toda minha experiência profissional. Eu os via entrar naquelas salas de aula imensas dos cursos Unificado e Mauá localizados nas Ruas André da Rocha e Senhor dos Passos, no longínquo ano de 1982, sempre com um texto escrito. Não era resumo, não era a apostila, não era um papel com anotações. Eu via que era um artigo pronto. Schilling entrava com fascículos; Lopes, com folhas de papel A4 mimeografadas. Essa imagem nunca me saiu da cabeça, pois eu via depois os seus livros e associei de imediato como eram produzidos. Quando comecei no magistério, eu entrava em sala de aula com os textos prontos, inclusive quando lecionei em universidades, não o tradicional “esquema de aula” ou plano de ensino a partir do qual os conteúdos eram “despejados” pelo professor. Na universidade, vi isso ocorrer apenas uma vez, nas aulas da professora Sandra Pesavento, e eu sabia que isso decorria do fato de que ela também estava escrevendo seus livros.
Por sorte, então, eu antecipei o problema escrevendo muito mais do que o comum dos professores de minha geração. Como Becker, eu também não sabia que existia um campo chamado “teoria da composição”, que elabora modelos e conselhos para sanar os defeitos da redação científica e tudo o que já foi indicado nos meus textos anteriores. Como Becker, eu também fui inventando ao longo do tempo meus próprios métodos de trabalho, debatendo ao mesmo tempo, com a bibliografia que tinha disponível. Meu processo de escrever foi feito buscando uma distância da engrenagem acadêmica, aquela que nos faz fazer monografias que não faríamos por iniciativa própria e com pouco tempo e às vezes nem sequer nos interessavam. É aqui que o meio determina uma distância entre o aluno e sua produção e isso repete-se na cultura da pós-graduação, onde a conquista de uma vaga está mais na adesão a uma linha de pesquisa e às ideias de um orientador do que propriamente no desenvolvimento de suas próprias ideias. O próprio Becker afirma que sua obra é apenas a sua trajetória e que “não tenho como concorrer com as obras clássicas de composição, cujos autores conhecem a gramática, a sintaxe e os demais tópicos clássicos melhor do que jamais conhecerei” (Becker, p. 17).
A escrita de professores implica reconhecer as situações sociais em que vivem. As indicações para a redação de seus textos não podem ser, portanto, as mesmas para textos acadêmicos, ainda que desejáveis, pois você não precisa sobreviver a uma tese de doutorado, basta que sobreviva aos limites dados por sua organização, a escola. Nesse caminho, como eles, minha prosa não é exemplar; sei que meu texto possui também problemas, que, por mais que me esforce, erros de escrita às vezes passam, mas acredito que a trajetória de minha escolha de soluções possa ajudar outros professores. Por isso, meu apoio teórico neste ensaio é feito, além da minha experiência, a partir de duas obras básicas: a primeira, A Alma da fotografia, de David duChemin (Alta Books, 2017) e a segunda, continuo na exploração de O ensaio filosófico, utilizado no capítulo anterior.
O ensaio como lugar da técnica
A escrita é algo importante para o professor. Nós, professores, se não escrevemos ensaios diariamente, ao menos escrevemos algo diariamente na lousa da sala de aula. Sempre gostei do quadro-negro da sala de aula. Minhas primeiras aulas no curso Mauá eram escritas a partir dos textos que escrevia para preparar, o que já não é muito comum, que passava de forma esquemática no quadro negro, como a maioria dos professores faz. É uma parte do processo de ensino que é fascinante: você expõe uma ideia para a turma e, em seguida, a anota no quadro negro. A disciplina de história facilita muito isto, pois há personagens, datas, fatos que precisam ser anotados pelo aluno do quadro negro para fixação do conteúdo. Esta é parte da técnica de ensinar, mas como é a técnica da escrita?
Foto da Capa: Bruno Peres/Agência Brasil
Mais textos da Zona Livre: Clique aqui.