O ensaio como lugar de nossa perspectiva
Este texto é a segunda parte de “Os seis lugares do ensaio” e visa dar conta da ideia de perspectiva que um ensaio deve ter e a técnica que deve um autor escolher. É que cada professor decide pelo exercício do magistério de sua disciplina a partir de sua perspectiva. Sua intenção de educar determina aquilo que você é, e o que você deseja ensinar determina o que você faz com o taco de giz na mão. Você não sai da universidade com a perspectiva de ensino definida para sua aula; você a descobre ao longo de uma série de experiências. O ensaio possibilita anotá-las, isto é, fazer o registro importante da sua caminhada forma a produzir também um autoconhecimento. Temos produzido ao longo de nossa carreira inúmeros planos de ensino, além de reunir em cada aula conteúdos que pesquisamos e aprendemos na universidade de maneira singular. Em cada situação de ensino colocamos algumas de nossas ideias em prática, mas raramente anotamos e refletimos sobre as condições de nosso ensino em relação a seus objetivos. Às vezes fazemos isso na reunião de professores, mas raramente elas depois se transformam na base de livros, o que seria outra ideia para as equipes. O que acontece é que professores encontram sua perspectiva de ensino lentamente e tenho certeza de que a escrita é um passo importante desse processo.
A primeira vez que comecei a escrever sobre minha experiência de ensino foi na própria universidade, nas disciplinas do currículo de formação pedagógica. Eu já estava trilhando leituras paralelas que entendia importantes para ensinar os alunos dos anos 90. Junto com um grupo de amigos que partilhavam da mesma ideia, chegamos a organizar uma mesa redonda sobre o tema Interdisciplinaridade na História. À época, a disciplina de história estava avançando no que era denominado de Nova História, com novos objetos, problemas e métodos, como defendiam Pierre Nova e outros historiadores. No Brasil, com a hegemonia do pensamento de esquerda na universidade, essas correntes eram recusadas por determinados professores, “tratadas como um modismo”, mas víamos um horizonte importante para o ensino, pois, como defendia Alain Finkielkraut em A derrota do pensamento (Graal, 1988), nessa época “os professores eram modernos e os alunos, pós-modernos”. Para nós, a história tradicional, ainda que exigida pelo vestibular, não era suficiente para encantar os alunos. Essa experiência de reflexão foi anotada: escrevemos palestras que ministramos em evento na PUC de Minas Gerais. Foi a primeira vez que fiz ensaios a partir de minha pequena experiência de ensino: o estágio curricular.
Depois, além de registrar minhas aulas propriamente ditas em textos que depois viraram parte de meus livros, eu mesmo refletia sobre os recursos de ensino que utilizava: o uso de histórias em quadrinhos, do cinema, da literatura, tudo isso virou objeto de análise. Quer dizer, saber os conteúdos de ensino é tão importante como saber como queremos ministrá-los. Eu me lembro de ensinar o tópico de Renascimento para alunos do ensino médio do Colégio Mauá, uma das primeiras escolas onde fui professor, aprofundando os conteúdos relativos à arte, o que me obrigava a resumir os temas políticos e econômicos no tempo que eu dispunha, pois assim eu via que a aula ficava mais interessante para os alunos. Eu havia, é claro, imitado meus mestres: Luiz Roberto Lopes sempre ministrava aulas com o apoio de um projetor de slides para mostrar as obras de artistas renascentistas ou trazia um toca-discos onde nos mostrava músicas desse período da coleção da Discoteca Pública Natho Hen, da qual foi diretor por muitos anos. Diz duCemin que “o processo criativo é tão interativo, tão dependente de uma cadeia de ideias e circunstâncias, que não estou certo se poderia ser diferente” (p. 12).
O ensaio é o instrumento que torna pública a perspectiva de ensino de um professor. Sua escrita deve, por isso, expor o caminho da conscientização, seu entendimento do processo de ensino e seu papel no mundo. Não é o conteúdo que ensinamos “mas a maneira como fazemos. Não é o que enxergamos, mas o que percebemos e pensamos sobre o que percebemos” (p.13). Temos algo a dizer para nossos colegas professores, seja da mesma disciplina ou outras, com nossas experiências sobre o processo de ensino, como apontam a direção de nossos objetivos e se refletem um momento da experiência do professor. “Qual é a melhor exposição de um tema”?, pergunta duCemin. Em sua perspectiva, é justamente a pergunta que o ensaio quer responder. Ela só pode ser respondida quando o professor organiza sua visão com os planos de ensino, aula e anotações em suas mãos. Ele escreve sobre sua experiência “o que pensamos, sentimos, tentamos dizer e como o tentamos”. Somente nossa perspectiva pode assumir a responsabilidade sobre a exposição de um tema que é a de que somos professores de uma disciplina: o ensaio é apenas a forma como a registramos, como a fotografia da realidade o é para um profissional. É a nossa experiência que impõe um ritmo de escrita ao ensaio “e o que pensamos, sentimos, tentamos dizer e como o tentamos, entre as quase infinitas possibilidades, está em constante mudança, se não todo o dia, gradualmente à medida que evoluímos como pessoas e artistas” (idem). Pode parecer confuso, mas não é.
Essas idas e vindas são necessárias para que a escrita auxilie o professor a não tornar sua prática mecânica. Se ele considera o exercício do magistério uma arte, se tem consciência de sua necessidade de renovação, ele é capaz de fazer um ensaio que se comunique com outros profissionais. Ele precisa do ensaio para ver quem ele é, para mostrar que é capaz de dar alma a suas aulas. Em A alma da fotografia, duChemin defende a manutenção de um diário para o fotógrafo evoluir na sua arte, o que já sugerimos em nosso artigo anterior. Para ele, em primeiro lugar, um diário fornece elementos para o próprio autor referir-se ao seu processo. É o lugar onde “analiso meus pensamentos, minhas preocupações, alegrias e curiosidades” (p. 14). Para ele, que é fotógrafo, tal processo o faz pensar sobre o pensar. Mas é em um ponto que ele deixa em um lugar secundário que vejo como fundamental para o professor: o ajuda a ser paciente.
Paul Virilio é o filósofo que afirmou pela primeira vez a importância do ato de parar. Ele é um analista da velocidade no mundo contemporâneo e fundou o que ele chama de “dromologia”: a ciência da velocidade (dromos = corrida). É uma metáfora para compreender o mundo em que vivemos e que exige sempre mais produtividade de cada um, inclusive do professor. Aqui a imagem é a do professor que corre de uma aula para outra, de uma escola para outra, sem tempo para pensar sobre seus processos de trabalho. O diário, ao contrário, o obriga a parar, a refletir. Você acha trabalhoso um diário? Tudo bem. Parta direto para o ensaio. Mas em minha formação, no mestrado, o diário foi um momento importante. Ele me ensina que não se precisa ser veloz, mas paciente. A paciência é o caminho para o autoconhecimento e o ensaio seu instrumento. Ele coloca uma perspectiva em seu estado de evolução permanente. Ele precisa do diário para se perguntar sempre: “O que estou tentando ensinar? Para quê?”
Todo professor tem a necessidade de que seu processo de ensino tenha um significado maior. Que o processo de aprendizado seja fascinante para seus alunos como o foi para o professor. Existem milhares de professores na engrenagem maquínica da educação, mas poucos os que fazem uma reflexão mais profunda sobre o que fazem.
O ensaio como lugar de uso de uma linguagem
Muitos professores acreditam que seu processo de ensino não daria muitas páginas escritas. Eles sentem que seus planos de ensino não têm muito a dizer a outros professores. Afinal, todos que ministram uma determinada disciplina seguem os mesmos conteúdos de ensino. Mas compartilhar planos e conteúdo de ensino não significa que os professores deem suas aulas da mesma maneira. Dois professores da mesma disciplina podem acreditar que momentos diferentes do ensino de seus conteúdos são a razão de seu êxito profissional. Nunca achei interessante ministrar aulas sobre pré-história e antiguidade, ao contrário de colegas que se especializaram na área e se tornaram, inclusive, professores universitários delas. Eu preferia o campo da teoria da história e da história contemporânea e confesso que, quando descobri a existência da chamada história imediata, caí boquiaberto. Enfim, algo que poderia falar diretamente aos alunos, pensei.
Atribuímos lugares específicos aos conteúdos de ensino para nós mesmos. Gostamos mais de uns temas do que de outros. Nossas disciplinas utilizam linguagem e conceitos próprios e escrevo este texto para os professores de diferentes disciplinas – e, portanto, com diferentes linguagens – que tem interesse em escrever sobre suas experiências. Quando esse professor escreve um ensaio sobre elas, ele tem mais possibilidade de fazer com que seu processo se aperfeiçoe, conseguir reconhecimento e empoderar-se em seu sistema de ensino. O ensaio é o fio condutor da amostragem de nossas escolas: como estabeleço a relação entre conteúdos de ensino entre si e o universo de meus alunos? Essa primeira reflexão introduz outra: a de como adapto a linguagem universitária a uma linguagem coloquial sem perder conteúdo de ensino? Se introduzo na aula exemplos ou objetos concretos, como isso afeta a transmissão de conhecimento que busco atingir?
As respostas a estas questões estão na prática do professor: o ensaio mostra como tomamos decisões no planejamento de ensino e, na prática. Ele é este instrumento que permite ao leitor observar o mundo da educação, compartilhar com você o olhar, dividir as inúmeras possibilidades de ensino, inclusive entre disciplinas diferentes. Dos elementos que selecionamos, o ensaio revela como os selecionamos, os elementos da metodologia de ensino, as opções e as razões da escolha. O ensaio é um instrumento para compartilhar segredos. Meu segredo de ensino está em possuir duas coisas: um olhar voltado para os problemas do presente e uma boa biblioteca para pesquisar. Sem o primeiro, eu não poderia escolher a agenda que toca as pessoas; sem o segundo, eu não poderia aprofundar meus insights e encaixá-los na literatura da disciplina. É que só podemos ter efetividade no ensino se o que temos a dizer afeta nossos alunos de alguma forma; além disso, só temos sucesso se mostramos para o nosso aluno que temos algo novo a dizer, o que somente o estudo possibilita.
Por isso, leio autores do campo das humanidades, usando-os como apoio teórico de minhas análises. Eu deixo que suas análises influenciem o que vejo e sei que faço isso apenas com uma parcela do acervo de conhecimento disponível. Ninguém chega ao fim do domínio dos conteúdos e pesquisas de sua área, mas provavelmente, se tiver método, poderá contar boas histórias em suas aulas e registrar isso em seus ensaios. É para isso que ele serve: para registrar o que vivemos em sala de aula. Você não precisa entender todos os elementos de seu próprio processo de ensino, mas com certeza, um ensaio é um bom ponto de partida para isso. Ele vai poder colocar explicações para você em espaços que você ainda não tinha parado para refletir. É o modo como você interpreta que conta.
O próximo artigo finalizará o artigo com minha visão do significado da interpretação ensaística e uma proposta provocadora: um ensaio tem… alma?
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