Sinto ser possível discorrer sobre um olfato que recorda, um odor que traz lembranças – um olfato que vê. Por mais absurda que tal asserção possa parecer, sua estranheza dependerá do quanto estamos acostumados a não mais olhar para as coisas, mas apenas enxergá-las e entendê-las dentro da métrica do discurso usual.
Como escritor, gosto de utilizar palavras que, à primeira vista, não se encaixam em determinadas sentenças. Esse procedimento pode ser visto como a fórmula do fracasso literário – e talvez o seja –, mas também pode ser o caminho para a aquisição de uma nova linguagem. Como psicólogo, isso me parece fundamental. O ato de escrever de maneira não articulada me ajuda a compreender o modo não articulado do discurso do outro. É uma questão simples: a prática de ser eu mesmo me auxilia a enxergar o outro com mais clareza, pois as linhas que antes se confundiam com a minha sombra, com os limites e bordas da minha personalidade, tendem a desaparecer, ou tornarem-se parcialmente suspensas.
Vejo pelo olfato, ouço pelo paladar e sinto pela visão; e, a partir disso, o outro aparece. Ele se revela, antes de tudo, nas entrelinhas do discurso e não na linha, no silêncio e não no ruído, no percurso e não na chegada. O caminho já é a chegada, e a chegada é apenas uma forma de concluir o trajeto – mas não de encerrá-lo. Ele continua conduzindo ao norte ou ao sul, ou a qualquer outra direção que se queira tomar.
Sinto-me intrigado quando ouço as pessoas dizerem que, ao caminharmos pelas estradas, deixamos nelas as marcas dos nossos passos. Para mim, sempre foi o contrário: são as estradas que marcam o meu caminhar. Não sou eu quem deixa rastros no mundo, mas o mundo é que imprime sua existência em mim. Agora percebo que discordo e concordo com a asserção supracitada. Não é possível pensar em um mundo que também não sofra a nossa influência. Verdadeiramente, a afirmação inicial desse parágrafo não conduz a nenhuma dedução verossímil da realidade. Sendo assim, não vejo a realidade apenas com meus olhos; a realidade vê os meus olhos com suas cores. Um pássaro que canta, canta sempre fora e dentro do meu ouvido; um cheiro existe simultaneamente fora e dentro do meu nariz.
Qual métrica há nos sentidos? É preciso ressignificar as formas de definir, conjugar e ordenar os objetos dentro da linguagem e da gramática, reinventando-as. O passarinho, que é um ponto na tela, abre as asas e voa, rabiscando o mundo com sua leveza e liberdade. O idioma pode ser reinventado; há outras maneiras de falar, de perceber, de sentir.
Acredito que essa seja a essência da psicoterapia: pensar, repensar, movimentar-se entre os pontos, entre os sentidos, habitar tanto as linhas quanto as entrelinhas. A linguagem não é um fim, mas um meio – um caminho em constante construção, onde cada pegada é, ao mesmo tempo, partida e chegada.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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