Joel, um surfista amador de Xerém, da Baixada Fluminense, foi um visionário. Quando o mar avançou mais longe e mais rápido do que os cientistas haviam previsto e a linha de costa chegou até o sopé da Serra do Mar, ele reparou que algo extraordinário acontecera. Ao longo da enseada onde antes era o vale do rio Capivari, no fundo da Baía da Guanabara, as ondas formavam, por razões ainda não bem compreendidas, tubos perfeitos, que perduravam por quase 2 quilômetros e tinham quase 1 quilômetro de largura. Uma Skeleton Bay em miniatura.
Não eram grandes ondas, mas eram perfeitas para surfistas iniciantes. Joel não precisaria mais fazer a longa jornada até a prainha, em Grumari, para surfar. Praia esta que, aliás, já não existia. Pois enquanto Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense viravam um arquipélago com centenas de ilhas e o mundo se debatia estonteado com os efeitos da inundação marinha de extensas regiões, Joel juntou suas economias e comprou a área que abrangia o final da enseada. Assim nasceu a Joel’s Perfect Waves Surfing School and Resort que hoje, nos anos 2050, é famosa no Brasil e no mundo.
Nessa história um tanto (ou muito!) surreal, o Joel se deu bem, mas imaginem o quanto o mundo inteiro estaria sofrendo se as áreas onde vivem e de onde tiram sustento bilhões de pessoas fossem inundadas pelo mar. A elevação do nível do mar está de fato acontecendo, por conta do derretimento das geleiras e da expansão do volume dos oceanos devido a seu aquecimento. Falamos sobre isso às vezes, mas, ao discutir os problemas do planeta, temos enfatizado tempestades, inundações e ondas de calor. No entanto, a ameaça da elevação dos oceanos não deve ser desprezada.
A boa notícia é que, segundo as estimativas da NASA, a Agência Espacial Americana, o mar deve subir cerca de 2 metros até o final do século XXI e cerca de 5 metros até 2300.
Parece uma elevação pequena, e lenta, mas esses dados escondem duas más notícias.
Primeiro porque uma elevação de 2 metros, ou mesmo 1 metro, se considerarmos o que está estimado em subir até 2050, pode causar muitos danos. Isto porque o afogamento em si, ou seja, tornar uma área permanentemente coberta pelo mar (considerando-se o nível da maré alta normal) representa apenas parte do problema.
No Brasil, estamos acostumados aos períodos em que a maré fica mais alta que a média. A cada mês há um período, chamado de máxima preamar, no qual a maré tende a ficar duas vezes mais alta que o normal. Ou seja, se numa determinada área a maré tem uma variação de um metro, ela pode subir até 3 metros acima da maré baixa durante a máxima preamar. Em termos práticos, isso significa que muitas praias brasileiras seriam completamente inundadas durante esse período, e não poderiam ser frequentadas.
Mas a situação fica mais complicada durante as ressacas, que ocorrem quando o mar é “empurrado” no sentido da costa pela pressão dos ventos de tempestades. As maiores ressacas, na costa brasileira, são geralmente associadas ao avanço de frentes frias, ou a ciclones extratropicais.
São frequentes as imagens de avenidas, residências e outras instalações costeiras invadidas pelo mar durante as ressacas. Nesse ponto devemos lembrar que, dependendo da fisiografia da costa, 1 metro de elevação do nível do mar pode significar de dezenas a centenas de metros de deslocamento horizontal da linha de costa (ou mesmo quilômetros em certas situações).
Veja o caso do Rio de Janeiro. Se atualmente, durante as ressacas, o mar invade a Avenida Vieira Souto e a Avenida Lucio Costa, na Barra da Tijuca, uma elevação de 1 metro fará com que os prédios dessa avenida sejam constantemente atingidos, e provavelmente tenham suas estruturas comprometidas. Ou que essas vias (e muitas outras vias costeiras no Brasil e no mundo) tenham que ser protegidas por muros de concreto, como o que existe na Avenida Mauá, em Porto Alegre. Diremos adeus a alguns dos mais belos cartões postais do mundo!
E há mais. Nos exemplos acima mencionei eventos normais. Mas o clima está mudando e eventos extremos ficarão cada vez mais comuns. Para examinar esse caso usarei primeiro exemplos de Nova York.
Em 2012, a supertempestade Sandy alagou as partes baixas de Nova York e Nova Jersey, incluindo o metrô e o Memorial do World Trade Center, causando prejuízos da ordem de 70 bilhões de dólares e a morte de pelo menos 13 pessoas. E naquela época o mar estava apenas 20 cm acima do nível pré-industrial. No inverno de 2023 uma tempestade de muito menor porte causou nova inundação em Nova York. Ou seja, com a subida do nível do mar, mesmo de poucos metros, tempestades “normais” poderão causar inundações catastróficas, e supertempestades como a Sandy uma destruição inimaginável.
E não esqueçamos do furacão Katrina, que causou, em 2005, uma catastrófica inundação em Nova Orleans, resultando em prejuízos de mais de 100 bilhões de dólares e a morte de pelo menos 1.800 pessoas. Todos esses fenômenos vão se tornar mais dramáticos devido à ocorrência de eventos extremos e a subida do nível do mar.
E estes foram apenas alguns exemplos. Olhe o mapa do mundo e veja quantas cidades e países podem ser afetados. No Brasil, Santos, Recife, Salvador, Fortaleza, só para citar as maiores. Nos Estados Unidos, Miami (a mais afetada), Nova Orleans, Los Angeles, Baltimore, e até Washington D.C. No mundo, Londres (o rio Tâmisa é afetado por marés), Veneza (visite antes que seja tarde), Tóquio, Shangai, e muitas outras.
Países inteiros podem ter extensas regiões inundadas. Não só as já bastante comentadas ilhas do Pacífico, que podem simplesmente desaparecer, mas países como Bangladesh, em que cerca de 50 milhões de pessoas vivem em áreas de até 5 metros acima do nível do mar. É onde estão suas terras mais férteis. Nesse caso, basta invasões marinhas intermitentes para que boa parte das regiões que alimentam seus 170 milhões de habitantes fiquem inviáveis para a agricultura. E isso já está acontecendo. Milhões de pessoas estão sendo afetadas, a maior parte delas em Dhaka, a capital do país, onde vivem 19 milhões de pessoas na maior densidade demográfica do mundo, e não tem como mais receber tantos refugiados.
Notem, se a história do surfista Joel foi uma ficção, os cenários que descrevi depois são absolutamente realistas. A probabilidade de ficarem muito mais graves até 2050, ou mesmo nesta década, é muito alta. Na verdade, os cenários que apresentei são conservadores. E aí vem a segunda má notícia.
O fato é que há muitas incertezas acerca de como o degelo e o nível do mar vão de comportar. Isso porque esses fenômenos dependem de muitos fatores, muitos ainda desconhecidos, como o comportamento das zonas profundas dos oceanos.
O que se tem observado, e isso é muito preocupante, é que o degelo das massas polares, está mais rápido do que os modelos previam. As maiores massas de gelo continental, que ocorrem na Groelândia e na Antártida, estão acelerando seu derretimento de forma dramática.
Se as massas de gelo dessas duas regiões derreterem, irão causar um aumento do nível do mar de 80 metros! Uma elevação desta escala provavelmente só irá ocorrer em milênios, e mesmo assim somente se os humanos continuarem a emitir gases de efeito estufa. Pelo menos é o que o atual conhecimento nos faz prever. Mas a natureza às vezes nos prega surpresas. As incertezas relativas à velocidade da subida do nível do mar, e os recentes erros dos modelos em estimar a taxa de derretimento das geleiras, num mundo em que 600 milhões de pessoas vivem em elevações abaixo de 10 metros acima do nível do mar, devem ser motivo de grande preocupação.
Esse é um assunto que não se encerra nessa coluna. Mas por hora farei uma pausa, uma vez que explicação das causas e das incertezas associadas aos mecanismos que estão causando a aceleração do derretimento das geleiras é um tanto complicada, e eu não quis adentrar em conceitos de física um pouco mais profundos em plenas férias de verão!
Mas é um dos tópicos mais importantes no que se refere às transformações do planeta. Voltarei a ele em breve.
Semana que vem vou abordar os resultados da COP 28 que, se não foram decepcionantes porque não se esperava muito mesmo de uma conferência sobre o clima realizada em Dubai, não trazem motivos para ficarmos animados.
Observação final: Não esqueça de ver o vídeo que publicarei na próxima quinta-feira na minha conta do Instagram @marcomoraesciencia, com aprofundamentos sobre o tema da semana.
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