Poeta, romancista, contista e autora de ensaios de não ficção, a escritora americana Ursula Le Guin (1929 – 2018) teve uma prolífica carreira na qual ganhou mais de 50 prêmios, publicou mais de 23 romances, 12 volumes de contos, 11 volumes de poesia, 13 livros infantis e cinco coleções de ensaios, consolidando uma obra que ajudou a renovar até mesmo o que se pode esperar de um livro de Ficção Científica.
O sucesso das “profecias” de Júlio Verne, que antecipou em muitos de seus livros coisas como máquinas voadoras, o submarino e a viagem à Lua, criou em muitos leitores que não têm uma relação muito aprofundada com a ficção científica a ideia genérica de que o caráter visionário do gênero se restringe principalmente a imaginar inovações tecnológicas que mais tarde se concretizam no mundo extraliterário. Sim, essa é uma de suas facetas, mas o que o gênero tem de tão instigante é a sua capacidade de também imaginar realidades sociais futuras – a ponto de muitos aficionados insistirem que o melhor nome para esse tipo de narrativa seria “ficção especulativa” (definição discutível, já que toda ficção é, a seu modo, especulativa). Às vezes, essas realidades sociais fictícias foram provocadas por mudanças tecnológicas, claro, mas outras, por simples transformações históricas de mentalidades. E, nesse tópico, Ursula K. Le Guin foi uma das autoras de maior impacto na recente história do gênero.
Nascida em 1929, em Berkeley, na Califórnia, Ursula K. Le Guin (o K. é de seu sobrenome Kroeber; Le Guin era o sobrenome do historiador Charles Le Guin, com quem se casou em 1953) começou a escrever ainda no início da década de 1950: poemas, contos e romances passados em um país fictício chamado Orsínia (uma brincadeira bem-humorada com seu nome, “Ursula”, que significa “ursinha” em latim). Ela começa a publicar profissionalmente, contudo, apenas a partir do início dos anos 1960, com diversos contos editados em revistas dedicadas à ficção científica, como Fantastic Science Fiction ou Amazing Stories. É no fim dos anos 1960 que obtém seus primeiros grandes sucessos, com os romances O Feiticeiro de Terramar, de 1968, e o hoje considerado clássico A Mão Esquerda da Escuridão, de 1969, obra que consolidou seu nome levantando, há mais de cinco décadas, discussões que não só ainda são relevantes como são mais discutidas hoje do que naquela época.
Tecnologia x Sociologia
Esse é também um momento em que estava no auge um modelo de ficção científica firmemente ancorado em especulações sobre a evolução tecnológica lastreadas nas chamadas “ciências duras”: Física, Astronomia, Química. Foi para longe dessa onda que ela começou a navegar com A Mão Esquerda da Escuridão, parte do chamado Ciclo de Hainish, romances de histórias avulsas cuja vaga interconexão se dá por apresentarem aspectos diversos de um mesmo universo futuro no qual a Terra se tornou parte de uma ampla federação planetária chamada Ekumen. Nessa vasta série de contos e romances, a Terra chegou ao entendimento de que faz parte de um conjunto de planetas habitados que, no passado, foram colonizados ou alvos de experiências genéticas por uma civilização alienígena tecnologicamente avançada vinda do Planeta Hain – daí o nome da longa sequência de histórias.
Le Guin levou para o centro de sua obra considerações etnográficas, antropológicas e sociológicas, enfocando a estranheza do contato entre civilizações e analisando minuciosamente que preconceitos podem corromper as relações entre sociedades literalmente de mundos diferentes. A Mão Esquerda da Escuridão centra-se na figura de Genly Ai, um emissário humano enviado ao gélido planeta Gethen, um dos mundos habitados mais remotos do universo, com a missão de convencer seus ariscos habitantes a aceitarem filiar-se ao Ekumen. Embora Gethen tenha abolido a guerra há muitos séculos, o enviado vai encontrar no planeta duas nações rivais cujas diferenças de organização social e hostilidades permanentes podem fazer renascer os conflitos violentos por poder e território.
Genly Ai começa sua missão passando dois anos em Karhide, uma nação monárquica ríspida e afundada em protocolos, de feição mais medieval do que tecnológica. Como nunca houve no território nenhum contato extraterrestre anterior, Karhide dirige ao enviado uma desconfiança renitente, e o principal aliado do emissário no país, Estraven, primeiro-ministro do rei, cai em desgraça por sua ajuda ao forasteiro. Depois disso, Genly Ai tenta a sorte na nação vizinha Orgoryen, uma comunidade sem rei, administrada por conselhos coletivos e aparentemente mais aberta do que a medieval Karhide, mas que pode oferecer um perigo ainda maior ao emissário do que o destino anterior.
Um dos grandes problemas de Ai para cumprir sua missão, e um dos elementos mais inovadores do romance, é que o emissário não consegue compreender a mentalidade dos gethenitas, seres andróginos que passam 80% de seu tempo vivendo em um corpo sem sexo definido, que só assume uma biologia masculina ou feminina em períodos mensais de um período de cio chamado Kemmer, no qual casais se formam e os parceiros transicionam para um gênero aleatoriamente. Assim como os gethenitas consideram uma perversão imoral o corpo permanentemente sexuado de Genly Ai, no que para eles equivale a um cio perpétuo, o emissário, um humano heterossexual masculino, tem dificuldade para apreender como essa biologia radicalmente diferente interfere na formação das sociedades e das mentalidades em Gethen.
Alegorias
Sim, você tem aqui literatura de ficção científica escrita há meio século discutindo fluidez de gênero: esse é o grau de antevisão de uma escritora como Le Guin. Anarquista e taoísta por escolha, sua obra desde o início trabalhou com alegorias e mitos. Também retratou com minúcias como sociedades com visões diversas – e o conflito entre essas duas formas de encarar a realidade – têm tanto poder sobre o destino dos personagens quanto conspirações a portas fechadas. Esse é um modelo ao qual ela vai voltar seguidamente, assumindo um tom cada vez mais político. No início dos anos 1970, por exemplo, ela vai apresentar sua visão crítica e feroz sobre a guerra do Vietnã no romance The word for world is forest, recentemente publicado no Brasil pela editora Morro Branco como O Nome do Mundo é Floresta, uma história de guerra e colonização narrada pelo ponto de vista de uma civilização pacífica que precisa aprender a brutalidade após ser invadida por conquistadores agressivos e sedentos por exploração de recursos.
Ela também apresentaria sua visão simbólica da Guerra Fria em Os Despossuídos, atualmente em edição nacional pela Aleph, também parte do ciclo interplanetário de Hainish. O livro descreve a relação tumultuada entre dois planetas, Urras e Anarres (sendo que este último, na verdade, era originalmente uma lua do primeiro). Se em Urras as questões geopolíticas são semelhantes às da Terra durante a Guerra Fria, com Estados rivais em uma luta de influências pelo controle político, em Anarres, habitado um século antes por imigrantes dissidentes autorizados a partir de Urras para formarem uma nova sociedade, desenvolveu-se uma comunidade anarquista.
O centro do livro é a aventura de Shevek, jovem cientista nuclear que decide migrar do anárquico Anarres para o capitalista Urras para tentar estabelecer uma ponte entre a ciência dos dois mundos. Introvertido, distraído e mesmo alienado das questões de poder, Shevek, parcialmente inspirado na figura real do criador da Bomba Atômica, Robert Oppenheimer, é um físico brilhante, que, sozinho e sem conhecimento de muito da Física que o precedeu, dá passos inovadores no desenvolvimento de processos além da velocidade da luz. Mas o coletivismo radical do seu mundo faz Shevek se sentir desperdiçado, já que burocratas medíocres o colocam para trabalhar em atividades braçais que não o ajudam a desenvolver seus talentos, o que o faz acalentar a ideia de migrar para Urras e trabalhar com outros físicos como ele. Quando finalmente consegue seu intento, sua personalidade vai sendo gradativamente modificada à medida que percebe que o sedutor paraíso “capitalista” é ainda mais problemático do que seu mundo natal.
Fantasia
A autora também levou sua abordagem com ênfase no panorama e na construção do ambiente para o universo da fantasia, com a série de cinco capítulos Terramar, iniciada em 1968 com o já mencionado O Feiticeiro de Terramar e concluída em 2001, com o quinto volume, The Other Wind. Até o momento, quatro desses volumes tiveram edição recente no Brasil, também pela Morro Branco: O Feiticeiro de Terramar, As Tumbas de Atuan, A Última Margem e Tehanu. O primeiro volume narra a história de um talentoso órfão enviado para uma escola para aprender magia – sim, uma trama que antecipou os principais elementos da série Harry Potter, mas J. K. Rowling, que se acha muito genial para reconhecer influências, jamais confirmou se Terramar a havia de algum modo influenciado. O certo é que influenciou Neil Gaiman, fã incondicional de Le Guin, e criador de outra história que muitos apontam como base para Harry Potter, os quadrinhos Os Livros da Magia. Ambos, aliás, figuras hoje complicadíssimas por suas questões pessoais.
Le Guin sempre se rebelou contra o que considerava a “ignorância dos críticos” em diminuir gêneros como a fantasia e a ficção científica. Seu trabalho pode ter contribuído para reduzir esse preconceito. Sua tarefa autoproclamada como escritora não era prever que tipo de propulsão alimentaria as naves das futuras viagens interplanetárias, e sim que tipo de pessoas encontraríamos no desembarque.
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Foto da Capa: Marian Wood Kolisch, Oregon State University, Wikicommons