No artigo anterior viu-se como foi a primeira vinda de Oscar Niemeyer Soares Filho (1907-2012) a Porto Alegre para tratar do projeto de um edifício para abrigar a sede do Instituto de Previdência do Estado (IPERGS). Embora não tenha dito a finalidade da viajem, descreveu-a com algumas riquezas de detalhes. Meia década depois retornou, para ser paraninfo da primeira turma de urbanistas formados pelo curso superior, criado em 1947, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul (IBA-RS). Sobre a segunda viagem, sabe-se do que ocorreu através de documentos e depoimentos de personagens locais. O professor Círio Simon lembra que a imprensa acompanhou e registrou os passos do renomado arquiteto, fato também registrado pelo arquiteto e professor Fernando Corona (1895-1979), no seu segundo diário, ainda inédito, entre as folhas 4 e 9. Para lembrar o leitor, Niemeyer veio em 1944 e/ou 1945 (ler o artigo anterior), para projetar o edifício que anteriormente Corona e Egon Weindoerfer (1897-1973) foram vencedores de um concurso público. Para que o leitor saiba, no seu diário, Corona equivocadamente diz que a vinda de 1949, foi a primeira de Oscar Niemeyer, contrariando o depoimento do próprio arquiteto carioca, que consta no livro As curvas do tempo – Memórias, publicado no Rio de Janeiro, em 1998, pela Editora Revan.
Ao contrário da primeira vinda, quando tratou do projeto de um edifício, diretamente com o presidente do IPERGS, senhor Herófilo Carvalho de Azambuja (1899-?), a segunda visita “foi longamente esperada e cercada de amizades cultivadas ao longo de existências” (SIMON, 4/5/2020). Um destes amigos era Fernando Corona, cujo filho Eduardo Corona (1921-2001), trabalhou para Niemeyer. Eduardo foi estudante de uma das últimas turmas de arquitetura da então Escola Nacional de Belas Artes, formando-se, em 1946, já na Faculdade Nacional de Arquitetura, que a substituiu, em 1945. Lucio Costa (1902-1998) e Oscar Niemeyer se formaram nesta instituição superior de ensino. O arquiteto carioca e o arquiteto espanhol se conheceram no Rio de Janeiro, numa tarde do inverno de 1944, no escritório do arquiteto gaúcho Firmino Fernandes Saldanha (1905-1985), amigo comum de ambos. Fernando Corona estava no Rio de Janeiro para recolher os programas do curso superior de arquitetura da Faculdade Nacional de Arquitetura, a pedido de Tasso Bolivar Dias Corrêa (1901-1977), diretor do IBA-RS (Diário inédito de Fernando Corona, 1944, citado por SIMON, Idem).
Os três engenheiros que haviam concluído o curso e o diretor da instituição superior de ensino, contataram com o homenageado. Por carta, Niemeyer aceitou o convite, confirmando a vinda para o mês de abril. Pelo depoimento de Corona, no seu diário, veio com a esposa, Annita Baldo (1910-2004), e com Eduardo Corona. Nada se sabe do transcurso desta viagem, novamente enfrentando as estradas de terra para chegar ao sul. Com o objetivo de ser o paraninfo da primeira turma de urbanistas formados pelo curso superior do IBA-RS, Oscar Niemeyer mais uma vez veio de taxi, partindo de São Paulo a Porto Alegre, segundo Fernando Corona. Nelson Assis, em reportagem publicada em 15 de maio de 1949 – um mês depois da vinda do arquiteto-, diz que Niemeyer veio em um “taxi carioca” (Assis, 1949, p. 43). É bom lembrar que Niemeyer sempre morou no Rio de Janeiro, porém, no início dos anos cinquenta, teve uma forte atuação profissional na capital paulista. Fica esta dúvida quanto ao local de onde partiu para Porto Alegre. Assis diz que Niemeyer chegou no dia da formatura.
A solenidade foi realizada na no dia 13 de abril de 1949. Círio Simon destaca que “Em noite memorável, os três pioneiros em urbanismo no Brasil, colaram grau: Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007), Nelly Peixoto Martins e Sérgio Corrêa (Figura 1). O auditório Tasso Corrêa esteve totalmente ocupado por gente interessada. Os professores e estudantes, que na época prestigiavam os palestrantes externos, como ocorreu com Mauricio Cravotto (1893-1962), que esteve no ano anterior, na instituição, certamente estavam muito interessados pela presença do arquiteto carioca (Figura 2). Tasso Corrêa abriu a sessão estando a Congregação do Curso acompanhando a cerimônia em volta da mesa” (SIMON, 8/5/2010). Francisco Riopardense de Macedo falou pelos formandos. Simon disse que o paraninfo, tímido, pouco falou, e pelo que se sabe, pouco foi ouvido. Falou para dentro e muito baixo. Importava mais era a sua presença (Idem). Assis, ao contrário, na sua reportagem, afirma que Niemeyer “Não fez o clássico discurso de paraninfo. Preferiu discorrer, numa conferência ilustrada com projeções, sobre a evolução da arquitetura no Brasil, desde os tempos coloniais. Aquecida de paixão sincera e honesta – clara, precisa e de algum modo poética – conseguiu não só interessar, mas encantar a assistência” (ASSIS, op. cit. P. 43-44). Esta deve ter sido uma das palestras que Círio Simon diz que Niemeyer realizou, na ocasião, em Porto Alegre.
Simon diz que o arquiteto, para o Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS), realizou duas palestras mostrando o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, no Rio de Janeiro, do qual fez parte da equipe de projeto liderada por Lucio Costa, que contou com a consultoria de Le Corbusier (1887-1965), e da qual fizeram parte os arquitetos Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Jorge Machado Moreira (1904-1992), Carlos Leão (1906-1983) e Ernâni Vasconcellos (1912-1989), suas obras na Pampulha, em Belo Horizonte, e algumas residências. Coube a Eduardo passar as imagens para os presentes., na medida que Niemeyer solicitava (SIMON, op. cit., 8/5/2010). Confrontando as informações, fica evidente que a primeira palestra a que se refere Simon, foi a realizada na solenidade de formatura. A segunda, teria ocorrido na manhã do dia seguinte, 14 de abril, no auditório do Instituto de Belas Artes, esta sim, discorrendo “exclusivamente a respeito de sua obra” (ASSIS, op. cit., p. 44).
Obviamente que houve contato com a imprensa, sendo entrevistado pelo jornal O Correio do Povo, no hall do Preto Hotel, onde se hospedou. Falou sobre a forma plástica da arquitetura da Escola Carioca, a qual pertencia, destacando que ela surgia em função da evolução técnica e dos processos construtivos. Lamentou o atraso de Porto Alegre, em relação às principais capitais brasileiras no que diz respeito ao desenvolvimento da arquitetura moderna. No Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte e em Salvador, esta arquitetura já se fazia presente, enquanto em Porto Alegre, apesar de ter circulado apenas pela área central, viu apenas dois prédios projetados por Fernando Corona. Embora os projetos de Fernando Corona não fossem modernos no sentido corbuseriano, certamente apresentavam características que o diferenciavam da arquitetura predominante na cidade. Um dos que certamente Niemeyer viu, foi o Edifício João Ibañez, na Rua 24 de Outubro, número 46. Perguntado na mesma entrevista sobre o projeto que fez para o IPERS, confirmou que não seria construído por desagradar o diretor de obras da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o que lhe parecia natural uma vez que sua proposta ia de encontro à orientação acadêmica e passadista que ainda tomava conta do ambiente local. Na entrevista se disse ainda surpreso pela visão idealista e compreensiva que o curso do IBA-RS foi orientado, prevendo que muito contribuiria para a difusão das artes no Estado.
Como não poderia deixar de ser, Fernando Corona convidou o amigo para visitar sua casa, à Rua Doutor Timóteo, número 565. O encontro deu-se na tarde do dia 14 de abril e contou com a presença de professores, artistas, jornalistas, estudantes de arquitetura e de seus filhos. Mais de uma vintena de convidados. Três fotografias eternizaram o encontro (Figura 3). Duas tiradas no jardim da casa, e a outra no interior, mais precisamente no gabinete, onde aparece ao fundo o busto de Jesus María Alonso Corona (1871-1939), arquiteto e escultor espanhol, pai do anfitrião, local onde Niemeyer participou de uma conversa informal com os presentes. Assis, que lá esteve, disse que “reinava na sala o propício calor da intimidade”. Este jornalista destacou em sua matéria para a Revista do Globo, a repercussão internacional do visto negado pelo governo norte-americano para que Niemeyer pudesse ministrar um curso naquele país, para a Universidade de Yale. Niemeyer, por ser comunista, recebia o tratamento que um ano depois, sob a liderança do senador Joseph Raymond McCarthy (1908-1957), pessoas que comungavam dos seus ideais passaram a sofrer nos Estados Unidos, fato histórico que ficou conhecido como “macartismo”. No caso do arquiteto, houve, uma forte reação do próprio, recebendo o apoio internacional ao repercutir a decisão do governo ianque.
Concluídos os compromissos, Oscar Niemeyer retornou a São Paulo no mesmo taxi em que veio. Certamente a segunda vinda foi mais frutífera. Neste mesmo ano de 1949, o curso de arquitetura do IBA-RS formou sua primeira turma. Seus alunos acompanharam a segunda passagem de Niemeyer pela capital gaúcha, além disso, tiveram professores como Edgar Graeff (1921-1990), que se formara no Rio de Janeiro, em 1947, e que orientavam no sentido de desenvolver a arquitetura moderna aqui no sul, tendo como referenciais, Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Nesta primeira turma se formaram arquitetos, Bruno Félix Rossi (de Caxias do Sul), Emil Achuti Bered (1926, de Santa Maria), Francisco dos Santos Coutinho (de Porto Alegre), Jasson Cavalcanti de Albuquerque (do Estado de Alagoas), José Lorenzoni Parreira (de Porto Alegre), Kurt Günther Hugo Schmeling (1923-1922, de Porto Alegre), Léo Alfredo Preto de Oliveira (de Júlio de Castilhos), Mauro Guedes de Oliveira (1925-2004, de Porto Alegre), Nelson Camargo Costa (do Estado de Santa Catarina), Remo José Irace (1921-1983, de Porto Alegre), Roberto Félix Veronese (1926, de Caxias do Sul) e Salomão Sibemberg Kruchin (1927-2013, de Santa Maria).
Na década de 1950, a arquitetura moderna finalmente conseguiria penetrar na cidade, especialmente pelas mãos das primeiras turmas de formandos do IBA-RS. Obra destacada foi a do Palácio da Justiça, projetado por Carlos Maximiliano Fayet (1930-2007) e Luiz Fernando Corona (1923-1977), filho do professor Fernando Corona, resultado de concurso público de projetos. Ainda hoje o mais corbuseriano edifício da cidade, com traços de leveza aos moldes da Escola Carioca, como se percebe, por exemplo, na sua fachada térrea principal.
BIBLIOGRAFIA:
ASSIS, Nélson. Oscar Niemeyer em Pôrto Alegre. Revista do Globo. Porto Alegre. Ano 20, fascículo 482, 14.05.1949, pp.43-45 e p.72 Disponível no site http://www.ipct.pucrs.br/letras
CORONA, Fernando. Caminhada – Tomo 2o – um homem como outro qualquer – nascer em um lugar e renascer em outro. Começo a escrever este tomo II na noite do dia 28 de maio de 1975, trinta e oito da minha chegada a Porto Alegre que correspondo da minha chegada a Porto Alegre a 1949. Inédito.
NIEMEYER, Oscar. As curvas do Tempo – Memórias. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1998 (páginas 69 a 81).
SIMON, Círio. Niemeyer em Porto Alegre 02 – O II Congresso Brasileiro de Arquitetura em Porto Alegre precede a presença de Niemeyer. Porto Alegre, 4 de maio de 2010, postado às 04:28 h. Profciriosimon.blogspot.com/2010/05/niemeyer-em-porto-alegre-02.html
SIMON, Círio. Niemeyer em Porto Alegre 04. Lições aos jovens arquitetos e urbanistas.
Porto Alegre, 8 de maio de 2010, postado às 9:57 h. Profciriosimon.blogspot.com/2010/05/niemeyer-em-porto-alegre-04.html
IMAGENS:
FIGURA 1 – Formandos Nelly Peixoto Martins, Sérgio Corrêa e Francisco Riopardense de Macedo com o paraninfo Oscar Niemeyer. Fonte: Blogspot do Professor Círio Simon (Niemeyer em Porto Alegre – 04; Imagem do Arquivo Geral do Instituto de Belas Artes da UFRGS.
FIGURA 2 – Arquiteto Oscar Niemeyer, Francisco Riopardense de Macedo (esquerda), professor Edvaldo Pereira Paiva (atrás de Niemeyer) e estudantes, na formatura da primeira turma de urbanistas do Instituto de Belas Artes, no dia 13 de abril de 1949. Fonte: Blogspot do Professor Círio Simon – Niemeyer em Porto Alegre 04; Foto: Flavio Damm, para a Revista do Globo nº 482, de 15 de maio de 1949, p. 45 (Acervo do Delfos – Biblioteca Geral da PUCRS).
FIGURA 3 – Arquiteto Oscar Niemeyer (ao centro), com professores e estudantes dos cursos de arquitetura e urbanismo do Instituto de Belas Artes, no jardim da casa do professor Fernando Corona (cuja cabeça aparece na parte inferior da foto), à Rua Doutor Timóteo, 565. Fonte: Acervo pessoal do Professor e Arquiteto Júlio Nicolau Barros de Curtis.