Com esse calor estonteante, esse contexto de notícias uma pior que a outra, uma alternativa foi ficar em casa e tentar desligar do mundo. Se as big techs têm controle do que vemos nas redes, as bets dominam os campos de futebol e a propaganda do intervalo, uma constatação de quem acabou seduzida pela tela da TV. Não sei se é bom, mas creio que preciso celebrar que consegui maratonar em poucos dias uma série da Netflix que recomendo: a temporada mais recente de Merlí: Sapere Aude.
Anos atrás, tinha visto as primeiras temporadas, com 40 episódios. A série de televisão mostra o quanto o professor de filosofia chamado Merlí se vale de diferentes métodos para promover debates e reflexões entre alunos. Naquelas temporadas, cada episódio se baseava nas ideias de algum pensador ou escola filosófica. Uma delícia aprender, relembrar as premissas básicas de Platão, Sócrates, Aristóteles, Nietzsche ou Schopenhauer.
A vida pessoal, tanto do docente quanto dos alunos, se mistura dentro e fora da sala de aula. Há muitas situações envolvendo ética e moral que são utilizadas para provocar o espectador. Além de me fazer voltar à convivência com os dilemas de juventude, o enredo é cheio de sacadas que nos fazem considerar diferentes pontos de vista sobre as decisões tomadas.
Nessas temporadas mais recentes – duas de oito episódios –, a história se passa entre estudantes de filosofia que vivem em Barcelona. Uma cidade cheia de encantos, tanto na parte antiga quanto na nova. Mas o melhor da série são os jogos de poder, interesse, com pitadas de ingenuidade e muita, muita lucidez no tratar de temas superatuais.
O quanto a universidade proporciona situações entre professores e alunos é outro ponto que me chamou a atenção. Talvez porque tenha voltado para a sala de aula no ano passado, devido ao mestrado. O comportamento dos protagonistas e a diferença entre os alunos de diferentes nacionalidades logo me fez lembrar da experiência incrível que tive na Internacional People’s College (IPC) na Dinamarca, em 1996, quando convivi com colegas de 40 nacionalidades diferentes. Eu me transportei no tempo, me lembrando o quanto os costumes da década de 90, no auge da minha juventude, mudaram hoje, mas a essência permanece a mesma.
A série escancara também o quanto estamos vivendo em bolhas de metamorfose, com famílias ainda com o pé no século XX e os filhos com a cabeça no XXI. O casal com síndrome de Down é uma das partes mais fofas e doces do enredo. O drama do alcoolismo, as relações cheias de nós e laços de afeto, as relações de desprezo entre pais e filhos e a luta para sobreviver no sistema que nos faz cada vez mais escravos das aparências são pulsantes. As relações LGBT também são outra tônica do enredo, que deixa claro o quanto a questão de gênero é muito mais complexa do que se ditar que o sexo é aquilo que se tem entre as pernas.
Ainda estou aqui
Esses dias vi o filme tão comentado e aclamado devido à atuação da Fernanda Torres: ‘Ainda estou aqui’. Saí muito tocada. Com os olhos inchados. Não só porque o filme é muito bem feito e a atuação dos atores é excelente. Mas porque me vi envolvida na história. Convivi com militares. Frequentei colônia de férias em quartéis em Cachoeira nas décadas de 70 e 80. Fui descobrir o que foi a ditadura militar na faculdade, na Famecos da PUCRS, ao ler o livro 1968: O Ano que não terminou, do Zuenir Ventura. Quem viveu em cidades do interior como eu e em uma família conservadora, vivia numa bolha alheia ao que se passava no Brasil.
Refletindo com os meus botões, percebi o quanto aquilo que vivemos e o que estamos vivendo ainda é velado, não dito, escondido ao longo do tempo. E o quanto promove consequências inesperadas. Até hoje, esse contexto de empurrar para debaixo do tapete lados obscuros da família, do contexto, é algo comum entre nós.
Não posso dar spoiler, mas constatar o ciclo da vida, o quanto tudo no fundo integra uma jornada nesse planeta “de provas e expiações”, como diria o André Trigueiro, no Papo das 9, é o que me faz seguir tentando decifrar o que nos envolve. Assim como o Sapere aude, cujo significado é ousar saber em latim. Vale muito a pena ver esse filme. Ultrapasse a sua zona de conforto, vá conferir o quanto a história do nosso país tem tanta coisa que precisamos saber.
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Foto da Capa: Netflix