Não é ouvir simplesmente. Simples aqui é um mundo complexo, no desafio de manter a simplicidade para deixar todo o resto e ouvir. Ouve-se também com os olhos, os pelos, as unhas. E, carregando todos eles, um corpo inteiro. Ouvir com a entranha (nas entranhas) deste corpo, embora a pele ouça melhor. Ouvir com a pele toda. Ouvir, apesar do que – a pele? – não quer ouvir. Ouvir apesar do que a inteligência antecipa.
Ouve-se com um feixe que inclui comprometimento e responsabilidade; paradoxalmente, com leveza. Porque se ouve só por ouvir até não ser só por ouvir. E, com vínculo, sentir também. Aí, ouvir sem porteira, lá onde cada som destampa um sentido e cada sentido pode doer no corpo todo que ouve, lá onde o corpo se desmaterializa e não se esgota mais na carne. Espalhou. Transcendeu. Ouve espirituosamente. É carne com alma, da pele às entranhas: sente vergonha, nostalgia, sente-se perdida, sente esperança de achar. Não é ouvir como quem está ali. É de fato estar ali para ouvir o sentimento até então incapaz de se ouvir.
Ouvir com o frescor da experiência. Ouvir como quem brinca seriamente. Ouvir o silêncio, o barulho, o barulho do silêncio. Ouvir o que não se tem. Ouvir o que não se sabe. Poder ouvir, apesar de. Ouvir o bebê que não fala, a criança difícil, o adulto que perdeu (ou ganhou) e grita. Ouvir o que lembra e esquece e recorda. Agora não há uma voz que sofre, há pelo menos duas (ao som de muitas), uma conta, outra ouve, dá no mesmo em cada diferença, cada repetição, cada novidade, cada eco. Ouvir ali é uma festa triste, alegre e tão indefinida que chega a evocar o fazer. Não que se alcance o milagre de fazer alguma coisa, na aventura épica de uma ação. Não se faz, só se ouve como uma leitura profundamente impossível de se fazer em uma hora só, em um encontro só, em uma vida só, é preciso continuar ouvindo.
Ouvir com a alegria de um cão, a sagacidade de um gato, a empatia de um homem. Ouvir como quem vê, mas não precisa ver com pressa. Ouvir como quem espera ver. Como quem entrega um pedaço de confiança e, por isso, continua ouvindo. Como quem saboreia o espetáculo, por vezes maldito, de um vir a ser. Ouvir de verdade o que pode estar mentindo, por não ter sido ouvido antes, de verdade. Ouvir como quem ouve a primeira tristeza do dia ou a última alegria. Ouvir para resgatar a primeira verdade, escondida por não ter sido bem ouvida. Por isso, depois de ouvir, os olhos estão mais vermelhos do que os ouvidos, as roupas mais amarfanhadas do que a cadeira e o corpo fatigado só deseja dormir para sonhar e ouvir mais ainda.
Faz algumas linhas, falamos em milagre. Outro milagre é continuar ouvindo, depois de tanto ouvir.
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Foto da Capa: Gerada por IA.