O racismo não é um desvio, é uma política, um sistema que se mantém. É um sistema legal. Sim, estamos falando de leis, porque ao longo do século 19, em um período de tempo idêntico, as leis ampararam financeiramente e socialmente imigrantes europeus (irlandeses, alemães e suíços – entre 1811 e 1828 – e italianos, no último quarto de século) e asiáticos com salário, proteção à família, educação às crianças e respeito às lideranças oficiais, entre outros direitos e reconhecimentos visando à integração da família migrante ao Brasil; e descaracterizaram a cultura, aplicaram punições físicas e prisões domiciliares, impediram a educação e a formação de núcleos familiares à população negra, proveniente do continente africano. A diferença: Leis Migratórias x Leis Escravistas.
A abolição, no Brasil, não teve reforma agrária como nos Estados Unidos, com o Homestead Act – embora lá a população negra recém-liberta, nos anos 1860, após a Guerra de Secessão, não tenha sido beneficiada com as distantes terras a Oeste.
Em 13 de maio de 1888, assinou-se a Lei Imperial n° 3.353. A chamada Lei Áurea aboliu a escravidão formal, ou seja, extinguiu o que era considerado legalizado e autorizado, vidas comercializadas e subjulgadas: “Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.” E assim, 700 mil seres humanos, após mais de 300 anos de escravidão, foram “libertos”, mas onde estavam não poderiam se manter. A terra, a propriedade e os bens imóveis permaneceram (e permanecem) nas mãos de quem sempre os teve: os brancos.
Olhar para o privilégio de ter a certeza sobre uma moradia contempla reconhecer que a omissão de ontem é uma escolha política e privada que persiste. É compreender a realidade de metade da população que, há séculos, gasta e custeia para habitar, para abrigar-se, e que há uma pequena parte da população composta por herdeiros de sucessões intermináveis e por donos de fortunas construídas a partir e durante a escravidão.
Renato Freitas, jurista, ativista e deputado estadual pelo Paraná, no podcast Medo e Delírio em Brasília, afirmou que a desigualdade social é fruto direto da negligência institucional diretamente atrelada a esse custo de moradia na vida das pessoas pretas ao longo destes séculos.
E, sim, faz parte do pacto da branquitude manter do jeito que estão como tudo está!
A ausência de reconhecimento sobre o ontem persiste no hoje ao não se reconhecer que habitação é direito básico mínimo, e que implica em uma grande parte da renda básica. Negar e recusar esse privilégio existencial é ser signatário desse perverso pacto que perpetua a exclusão e a discriminação racial. A realidade, quando apresentada às pessoas brancas, confrontadas com seus privilégios históricos, demonstra que é mais fácil manter-se aderente ao sistema do que contestá-lo.
Como a psicóloga Bruna Moraes refere em seu trabalho sobre a branquitude e fragilidade da branca, a negação, a raiva, a culpa excessiva, as lágrimas, deslocam o foco das experiências reais de pessoas negras para o desconforto emocional das pessoas brancas. Operando por denegação, velado e negado por quem comete, o racista sempre é o outro. O que importa é o desejo de manter-se como um bom cidadão. Quando confrontadas com seu papel na manutenção das estruturas racistas ou quando chamadas a uma autocrítica mais profunda, o que aparece? Lágrimas! “Logo eu, que tenho um amigo negro!” A inversão perversa é instalada.
A verdadeira transformação das relações raciais somente ocorre contra e combatendo esse sistema racista vigente. Assumir que é preciso corrigir séculos de brutalidade e abandono é só um começo, porque liberdade sem condições de existência é só mais uma forma de controle.
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.
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