É normal, e inclusive esperado, que os pais pelo menos esbocem o futuro de seus filhos.
Nós não nascemos folhas completamente brancas. Antes mesmo de virmos ao mundo, nós já ocupamos vários lugares, tanto dentro da família – o primeiro filho, o neto mais novo, a primeira filha mulher – quanto na sociedade de forma mais ampla – filho de funcionários públicos, de pessoas ligadas às artes, de uma cidade brasileira específica… Enfim, todos nós já nascemos com uma pré-história.
Esta narrativa mínima que nos antecede, e que nos dá um primeiro lugar no mundo, é carregada de desejo. Pais que não tiveram a oportunidade de estudar podem desejar que seus filhos tenham acesso à faculdade, por exemplo. Uma mãe que sempre quis ser escritora pode transmitir este anseio a sua filha, fazendo questão que ela faça cursos de escrita, ou incentivando a leitura desde pequena. Um pai médico pode querer que seu filho leve adiante o consultório, consolidando ainda mais o nome da família na cidade.
Um ponto importante aí é que, se tudo correr bem, os pais esperarão que os filhos os superem, que vão mais adiante do que conseguiram ir. A aposta é que os filhos vivam num mundo melhor, ou pelo menos que tenham vidas menos duras, que se sintam mais realizados.
Mas, claro, essa moeda também tem um outro lado. Essa imagem idealizada de futuro que os pais projetam – “vai ser um médico melhor que o pai”, ” vai ser escritora como a mãe não pôde ser” – quase sempre recai sobre os filhos como um imperativo: “tem que ser melhor médico que o pai”, “tem que ser a escritora que a mãe não pôde ser”. Essa leitura do desejo dos pais como uma obrigação a ser cumprida é típica da constituição de todos nós, neuróticos.
Este futuro idealizado vai sempre nos assombrar e, muitas vezes, vamos passar a vida nos comparando a esta imagem que nos foi desejada. Temos essa particularidade de supormos que seremos tão mais amados quanto mais dermos conta de ser o que esperavam de nós.
Por outro lado, é só por termos tido um futuro desenhado que nós sentimos que temos uma bússola mais ou menos fidedigna para nos orientar quando estivermos perdidos. Em momento de angústia e indecisão na viagem, sempre vale a pena dar uma olhada pelo retrovisor e observar de onde viemos. Não necessariamente para seguir pelo caminho apontado, mas para não se esquecer de que em algum momento alguém um percurso interessante para nós.
Para alguns pais, a realização dos filhos tem a função de suturar suas frustrações e desejos não contemplados. E tudo bem, é assim mesmo que funciona. Como filhos, estamos sempre às voltas com a tarefa de alinhavar as pontas soltas dos nossos antepassados, de realizar através de nossos atos tudo o que eles não puderam ser. Nos sentimos impelidos a restituir a imagem narcísica daqueles que nos antecederam – muitas vezes, até mesmo reparando eventuais faltas morais e éticas deles.
É por isso que não faz muito sentido essa moda atual de chamar todo mundo de “narcisista”, especialmente na ainda mais recente formulação de “mãe narcisista”. Sem que os pais possam sentir o seu narcisismo ferido, ou seja, sem que eles próprios não se vejam como faltantes com relação àqueles que lhes antecederam, também se torna impossível para eles projetar um futuro para um filho que, supõem, finalmente realizará tudo o que não puderam fazer ou ser.
Todos somos narcisistas, todos estamos às voltas com a distância entre quem somos e quem achamos que deveríamos ser. Somos apaixonados pela nossa própria imagem, pela forma como estamos sendo vistos, pelo que os outros pensam de nós. Nada mais humano do que só saber quem se é através dos olhos dos outros.
E também faz parte da vida decepcionarmos aqueles que amamos. A filha acabou não sendo escritora, preferiu ser engenheira. O filho não curte tanto medicina, foi ser artista plástico. Também é tarefa dos pais suportarem que, apesar de tudo, os seus filhos tomam decisões por conta própria. E cabe aos filhos suportarem que nem sempre serão assim tão amados. Nos tornarmos adultos justamente quando podemos olhar pelo retrovisor, ver de onde partirmos, agradeceremos pelo caminho percorrido mas, mesmo assim, escolhermos outra rota, tomarmos o desvio à frente.
Agora, nos casos de artistas mirins, que volta e meia surgem na mídia, o papo é outro: a estes filhos não foi suposto um futuro em que eles pudessem decepcionar seus pais. Não foram imaginados como seres autônomos que poderiam escolher a estrada que gostariam de seguir.
Os pais destas crianças não veem seus filhos como herdeiros de uma história, mas como um produto a ser vendido. É muito diferente. Um produto não tem direito de pensar, de escolher, de mudar o rumo. Um produto só tem valor enquanto puder ser negociado.
Não faz sentido chamarmos os pais destas crianças e adolescentes de narcisistas. Eles hipotecam o futuro de seus filhos aos ditames do discurso do capital e da fama, um ideal absolutamente esvaziado, sem história, sem alma. Eles fazem uso de seus filhos como instrumentos de satisfação e enriquecimento. São, na verdade, perversos.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram