O encontro com dias mais lentos dá a chance de meter a mão em caixas poeirentas e adormecidas. Nestes dias, o cansaço das lutas pede passagem e a gente dorme de conchinha com a infância, percorrendo portais do ontem. Alguns se abrem com uma dessas caixas esquecidas. Agora que já abri a minha, uma luz amarela a velha memória que passo a narrar.
Acho que o pai me mentiu por uns três segundos. “Tú tá me segurando, né pai?”. “Sim! Sim!” Tive muito medo de ele haver me soltado, mas também queria muito que ele cumprisse a ameaça: “Tá, agora eu vou te soltar!”. “Não, não, pai! Não me solta ainda…”. “Pai, tu tá me segurando, né?” “Tôoo”. E por instinto ou por achar que aquele “tô” se esvaiu rápido demais no ar, acabei olhando para trás e vendo o pai longe, sorrindo largo e profundo.
Caí. Não lembro se chorei. Fiquei calculando o quanto eu tinha conseguido sozinha. A distância do carro? A lateral da casa? Não importava, era eu fazendo rodar aquele aparelho estranho de montar. O pai veio me acudir, mas, na verdade, ele queria me dar a notícia: “Agora, tu já sabe andar de bici!”. Eu tinha seis e estávamos na praia. Daí por diante os limites do meu mundo aumentaram exponencialmente. Já não era mais a casa do lado, mas a quadra do lado. E, mais adiante, perdia sentido dar 10 voltas na mesma quadra se com este gasto de energia eu poderia rodar o bairro.
“Não vai pra outra praia!” Eu não ia, mas a minha mente sim. Outra praia? Como é ser de outra praia? Algo me dizia que devia ser igual, é o mesmo mar! Mas, por que essa história de outra? O que tem lá? Não era pra eu saber. Pelo menos não com os meus próprios meios. Então, eu não ia.
Na beira da praia ficava fácil perceber como o vento pode ser amigo da bici, assim como das pandorgas. Eu parei de pedalar e fiquei assim, toda pandorga, indo e indo. Como era bom! De vez em quando eu dava um pouco de linha, só umas pedaladinhas, e o vento fazia o resto. Foi assim no dia em que divisei melhor os limites da praia. De repente, aqueles palitinhos de fósforo engrossaram e viraram troncos cortados. Eu estava muito próxima da outra praia. Depois de um breve vacilo me tornei a outra praia.
Mantive meu segredo a vida toda. Em termos práticos dos 10 aos 14 anos. Não era difícil, porque eu saía direto para a outra praia e voltava, usando o mesmo tempo de sempre. Será que eles sabiam? O vento não era amigo da volta e minhas batatas das pernas fritavam. Chegava cansada, porque o percurso foi aumentando com os meus verões. O centro da cidade da outra praia foi incluído no trajeto. O vento não entrava muito na cidade, então aprendi a voltar por ela.
Acho que eu não ia mentir se o pai perguntasse. Com certeza ele não ia querer segurar meu banco até a outra praia. Assim, meio pandorga, acho que eu ia colocar a culpa no vento.