Em “O futuro da esquerda está no passado”, argumentei sobre a importância de retornar à Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores, lançada em 1º de maio de 1979, para repensar o futuro da esquerda. Agora gostaria de dedicar este ensaio ao próprio Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores, aprovado pelo Movimento Pró-PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion (SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980.
Entendo que relembrar, refletir e atualizar alguns princípios presentes naquele manifesto é fundamental para repensar o futuro da esquerda. Como se sabe, o diabo mora nos detalhes. O primeiro é que afirma que o surgimento do PT se deve “necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformá-la”. Mostrei aqui em Sler em “A esquerda que chama seus filhos” (25/11) que, entre os vários problemas de uma Frente Ampla de Esquerda, estão os efeitos das derivas identitárias, como ocorre com a emergência do movimento negro, mas não somente ele, segundo Elisabeth Roudinesco em seu O Eu Soberano. Ela sugere para o caso brasileiro que a substituição de um ideal de classe por identidade talvez seja o problema que provocou a derrota da esquerda na última eleição: milhões de brasileiros pobres que, por sua condição social, naturalmente votariam no projeto de esquerda, não o fazem, não querem mais a melhoria da vida do país, uma mudança social ampla, mas simplesmente sobreviver no capitalismo. Apontei que uma das causas é a redução geral dos direitos trabalhistas oriunda das políticas neoliberais, o que leva à precarização do trabalho de determinados grupos, seguida pelo fato de que tais movimentos preferem, aparentemente, garantir a sobrevivência de seus integrantes do que transformar o sistema. Como afirma Slavoj Zizek “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Não entrar no jogo do sistema
Entendo que a verdadeira revolução se encontra em lutar por modelos fora do sistema e não dentro dele. Dentro das lutas identitárias, não é esse o caso do chamado “empreendedorismo negro”, que tem ganhado ampla popularidade sob o argumento de que “promove uma melhoria da qualidade de vida da comunidade negra”. A esse respeito, encontram-se facilmente na internet exemplos de sucesso do empreendedorismo negro: a startup naPorta, “que ajuda a democratizar o acesso ao comércio eletrônico em comunidades, áreas rurais, ribeirinhas e regiões com restrições; a startup Diversidade.io, que desenvolveu a Afroempreendedores, uma iniciativa que encurta a distância entre negócios de empreendedores negros e grandes empresas, e o grupo Entre Raízes, um movimento de empreendedoras e executivas negras”. Em nenhuma dessas iniciativas vemos uma ofensiva contra o sistema capitalista, ao contrário. O negro de sucesso é o mais adaptado a ele; até os próprios agentes dessa transformação, as “startups”, não fazem parte da mesma fórmula encontrada pelo capitalismo para desenvolver trabalhos “arrojados”, “inovadores” e, principalmente, “de sucesso”? Aqui afirma-se que o sistema capitalista que está aí veio para ficar; aqui afirma-se que a solução do problema da desigualdade negra não passa pela mudança do sistema, mas de uma acomodação a ele; aqui fala-se do ajustamento como melhoria da “performance do trabalho negro” como qualquer variável do capitalismo e por isso entendo que talvez esse seja o motivo pelo qual é preciso mais uma vez voltar aos ideais do Manifesto expressos na vontade de transformação do sistema que está aí, e que fundou a esquerda. Nunca foi uma vontade de transformação para se adaptar ao modelo, mas ao contrário, era recusá-lo, transformá-lo, o que na época colocava a opção pelo modelo de democracia socialista proposto. Primeira questão oriunda do Manifesto para o futuro da esquerda: onde foi parar o desejo de revolução das massas?
Não ficar nas redes, ir para as ruas
A segunda questão é que, após o regime militar, após o movimento que levou à organização dos trabalhadores através de greves do ABC, “a mais importante lição que o trabalhador brasileiro aprendeu em suas lutas é a de que a democracia é uma conquista que, finalmente, ou se constrói pelas suas mãos ou não virá”. Atente para o detalhe: a luta se constrói pelas mãos. Quem escreveu o Manifesto pensou no trabalho braçal, mas também na luta que é empenhar uma bandeira, quando os trabalhadores seguram suas mãos para cercar ou resistir aos patrões. O arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, em “Sementes” (Bookman, 2024), identifica duas mãos. A primeira é a “mão inteligente”, capaz de esboçar um espaço imaginado ou objeto, uma “mão que está em uma colaboração e interação direta e delicada com a imagem mental. De certa maneira, a imagem parece se desenhar por meio da mão humana” (p. 161). Como arquiteto, Pallasmaa está preocupado com a interação das mãos com a ação do arquiteto na elaboração de um projeto, mas a ideia é que o conceito sirva para fundamental toda e qualquer ação. Cita John Berger, para quem é preciso situar as mãos na “interação dialética da realidade interna e externa”. Segundo Pallasmaa, para o pintor Henri Matisse, as mãos estão no meio do caminho de nossos atos, misturam percepções, memória e “um senso de si e da vida” (idem). A segunda, a “mão informatizada”, advém dos efeitos da revolução digital “nos aspectos mentais e sensoriais do trabalho” (p. 156). Entretanto, a mão inteligente tem vantagens, “a mão com um pedaço de carvão, um lápis ou uma caneta cria uma conexão tátil direta entre o objeto, sua representação e a mente”. Paradoxalmente, a mão informatizada oscila entre a “falsa precisão e aparente finitude da imagem computador”. Entre a imprecisão natural do primeiro e a falsa precisão do segundo, Pallasmaa prefere o primeiro, pois somente por tentativa e erro realiza seu esforço criativo. “O computador cria uma distância entre o artista e o objeto”, diz (p.159). A história da esquerda não é esse esforço de uma sociedade melhor por tentativa e erro em cada eleição?
A reflexão serve para lembrar que a esquerda deve, além de discutir princípios de base, dar atenção para os efeitos das transformações do mundo e da subjetividade que ocorreram nesse período. Sugeri em textos anteriores que a revolução digital afetou também a forma de fazer política. Byung Chul Han, em Não Coisas, reviravoltas do mundo da vida (Vozes, 2022), diz que o smartphone levou “o controle do mundo para a palma da mão” (p.43). É como se o último gesto político que nos restou fosse deslizar o dedo na tela do aparelho: “O mundo tem de se adaptar totalmente a mim. O smartphone reforça o autocentramento”, diz Han. Aqui, a mão que digita torna tudo objeto de consumo. A mão que agarra é diferente, ela mobiliza as massas. A revolução digital transforma não somente nossos sentidos, mas também os nossos gestos. A mão aqui é o signo da transformação de uma subjetividade, uma postura frente ao mundo. Não vamos para a rua unir nossas mãos em defesa de uma causa, preferimos ficar em nossos celulares em busca do que nos agrada individualmente. Fim do desejo de transformação do mundo pela ação coletiva. Em Infocracia: digitalização e a crise da democracia (Vozes, 2022), Han diz que essa mudança importa: as mãos que garantiam a posse dos meios de produção no regime disciplinar são substituídas pela posse de informações no capitalismo de vigilância. Com a revolução digital, deixamos de ser seres políticos para nos tornarmos “animais de consumo de dados”. Mas produzir e consumir dados não é lutar.
Não permitir que as elites produzam o desejo das massas
Fim da época, como diz o Manifesto, em que “as vozes do povo começa[vam] a se fazer ouvir por meio de suas lutas”. Ao contrário, agora as massas não querem mais falar por si próprias, voltaram a aguardar pelo que deseja a elite dominante, agora travestida nas informações do universo on-line. As elites, por sua vez, organizaram-se para aprimorar os mecanismos de alienação, os quais fazem com que as massas percebam como suas as necessidades da elite. Não se veem mais explorados pelo capitalismo, não o querem transformar, já o aceitam e querem apenas um lugar nele. Não querem mais construir outra sociedade, sequer passa por sua mente que o capitalismo possa ter um fim. As mãos não se levantam mais pela revolução porque estão ocupadas demais na tela touchscreen.
Em sua obra Levantes (Sesc, 2017), o filósofo e historiador George Didi-Huberman diz que são necessários gestos intensos para “começar e levar adiante uma “ação” voluntária e compartilhada”. A luta política tem sua coreografia, seus gritos e gestos. Eles servem para envolver seus participantes, dão-lhe substância para enfrentar as adversidades como grupo, fazem parte da solidariedade de base de que fala Michel Mafessoli. São as mãos que fazem o revolucionário levantar-se contra o opressor, ir para a porta da fábrica e chamar os companheiros para uma greve; ações políticas se fazem com mãos que querem levantar a alma humana, é a forma de congraçamento no espaço público, fazem parte do habitus revolucionário, para usar uma expressão de Pierre Bourdieu.
O que se vê dizer é que estamos perdendo até o repertório de falas e gestos capazes de envolver o povo em uma revolução. Didi-Huberman afirma que, quando se erguem os braços, produz-se um gesto e uma emoção que dura, onde se destacam as mãos. “Os republicanos espanhóis plenamente assumiram, eles cuja cultura visual tinha sido formada por Goya e Picasso, mas também por todos os fotógrafos que registraram ao vivo os gestos dos prisioneiros libertados, dos combatentes voluntários, das crianças ou da famosa La Passionaria Dolores Ibárruri. No gesto do levante, cada corpo protesta por meio de todos os seus membros, cada boca se abre e exclama o não da recusa e o sim do desejo” (p. 117).
Retomar a força dos gestos
Nas inúmeras imagens de gestos revolucionários resgatadas por Huberman, uma se destaca: a imagem produzida em março de 1938 pelo fotógrafo Willy Ronis. Ao cobrir uma greve na fábrica da Citroën-Javel para a revista “Regards”, ele registrou a imagem da líder operária Rose Zehner (foto da capa) que veio a ser publicada no jornal l’Humanité. Rose, órfã aos nove anos de idade, tornou-se operária e sindicalista ainda muito jovem e era conhecida como “o lobo branco”. O lobo branco tem sua autoridade no gesto da mão em riste. Esse detalhe importa: o grande político é capaz de seduzir as massas por sua voz e por seus gestos. Era assim para os grandes oradores que, no passado, levavam as massas a se posicionar favoravelmente por um mundo melhor. Não vivemos uma época onde há menos líderes, menos políticos capazes de emocionar as multidões? A foto de Willy Ronis com a mão em destaque liderando uma greve e que ilustra a biografia da relação entre a sindicalista e seu fotógrafo sinaliza não apenas a necessidade de grandes lideranças, mas de que o espaço público do debate político precisa sobreviver. No universo das redes, quem perde é a reunião na praça pública.
A imagem é o símbolo de uma época em que, como na Europa, o Brasil vivia: da mobilização de trabalhadores por transformação da sociedade e melhores condições de trabalho. Como o documento fala, isso só foi possível porque “os operários industriais, assalariados do comércio e dos serviços, funcionários públicos, moradores da periferia, trabalhadores autônomos, camponeses, trabalhadores rurais, mulheres, negros, estudantes, índios e outros setores explorados puderam se organizar para defender seus interesses, para exigir melhores salários, melhores condições de trabalho, para reclamar o atendimento dos serviços nos bairros e para comprovar a união de que são capazes”.
Recusar as posturas individuais
Vivemos isso, mas alguma coisa mudou. No passado, a frente dos explorados unificava-se sob um partido político para fazer suas reivindicações; no presente, é o contrário, tenta-se construir uma Frente Ampla de Esquerda para encaminhá-las, mas onde os explorados estão tentando se unir? Agora, não se trata mais, como afirma o manifesto, de “um regime organizado para afastar o trabalhador do centro de decisão política”. Agora, os próprios trabalhadores afastam-se por sua própria vontade, seja pelo desencanto político, seja pelo efeito de suaves estratégias de tomada da consciência que reduzem seu desejo de revolução coletiva, como se a revolta individual contra tudo e contra todos pudesse trazer algum efeito benéfico para todos.
Quando o documento fala do surgimento do PT como “decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados”, isso era produto, como diz Huberman, do “desejo de ser livre, das formas de vida em comum durante as greves” (Hubeman, p.207, grifo nosso). Não foi exatamente a vida em comum em lutas sociais que a revolução digital retirou das classes populares? Hoje, raros são nossos levantes contra a opressão do Capital capazes de produzir imagens que provoquem solidariedade. Se no passado, Huberman registrou dezenas de imagens na história da pintura, de Édouard Manet (1832-1883) a Sigmar Polke (1941-2010), além das artes visuais em geral, como a fotografia, o cinema, a arte digital, no Brasil as imagens que têm sido captadas por câmeras de celulares e que invadem as redes sociais têm um quê de provisoriedade, para mostrar as vítimas frente à repressão das manifestações. E elas querem dar visibilidade à opressão, não reunir as massas para enfrentar o sistema capitalista. “Já não resta aos manifestantes nada além da força do desejo (a força, não o poder). Por isso, na história, tantas pessoas morreram por terem se levantado” (Huberman, p. 207). As pessoas citadas por Huberman morreram porque assumiram o risco de lutar no espaço público, levantaram suas mãos contra um opressor; as vítimas retratadas nas redes sociais são, na maioria das vezes, por um desejo de visibilidade por grupos identitários em defesa da publicização e justiça no mundo que está aí, e não o contrário.
Incentivar o desejo de união
Ao contrário do que anuncia o Manifesto, hoje as massas não têm mais vontade própria de agir politicamente. E exatamente por isso que terminam servindo, ao contrário do que desejava o manifesto, “de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política”, quer dizer, tudo acontece exatamente ao contrário do desejo da esquerda. Fim da “vontade de emancipação das massas populares”, perda da ideia defendida pelos trabalhadores de que “liberdade nunca foi nem será dada de presente, mas será obra de seu próprio esforço coletivo”, como consta no Manifesto. Percebem a distância entre o Manifesto e a realidade?
Por isso, entendo que a hipótese de Roudinesco está correta e à qual o próprio movimento identitário não deu resposta à altura: não há mais esforço coletivo quando as lutas reduzem-se às identidades, às pautas dos diversos grupos que lutam e reivindicam individualmente, tese que a esquerda vem construindo a defesa de sua Frente Ampla. Nos termos do Manifesto, “frente a partidos que vêm se formando de cima para baixo”, o povo não protesta mais, até vota neles, como aconteceu recentemente em Porto Alegre.
Fim do desejo de união para a organização de uma “força política autônoma”, o que significa que o espírito liberal enfim penetrou nas consciências. Agora, cada um é livre para reivindicar o que quiser e é culpado individualmente por não atingir o objetivo. O PT perdeu espaço porque queria ser um partido dos trabalhadores explorados pelo sistema capitalista. Hoje, os trabalhadores não se sentem nem mais trabalhadores, apenas vivem como massa precarizada porque a intensidade da exploração de seu trabalho não permite a reflexão. Estes, os “precarizados”, sequer se sentem explorados porque acreditam que são “empresários de si mesmos”.
O partido queria ser dos trabalhadores, mas “não um partido para iludir os trabalhadores”. Não é esse exatamente o lugar ocupado hoje pelos partidos de direita? Eles substituem a “política como atividade própria das massas” que desejam participar de todas as decisões da sociedade, “pela política em que a atividade é própria das elites que desejam que suas decisões sejam as da sociedade”. Não é à toa que, através de seus governantes eleitos, decisões importantes como os rumos da urbanização da cidade passem a ser prerrogativas dos desejos de empreiteiros de plantão, que, por sinal, são grandes financiadores de campanhas políticas.
A esquerda precisa voltar para o cotidiano
Como isso aconteceu? O próprio documento dá a pista quando diz que “o PT quer atuar não apenas nos momentos das eleições, mas, principalmente, no dia-a-dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias.” O sociólogo Jessé Souza, em O pobre de direita (Civilização Brasileira, 2024), sugere que a esquerda não conseguiu estar presente no dia a dia, pois esse lugar no cotidiano do trabalhador pobre, especialmente o negro, foi ocupado não pela esquerda, mas pela igreja evangélica, caracterizando sua ação como contrarrevolucionária. Segundo Souza, o sucesso da igreja universal deve-se à “exacerbação de uma luta cósmica dualista entre Deus e o Diabo pelo domínio da humanidade”. “Uma guerra, portanto”. E continua afirmando que quatro características do movimento são importantes para seu sucesso:
“1) o embate não é apenas espiritual, mas prático, envolvendo a dimensão sociopolítica e a tentativa de dominar o mundo social segundo seus preceitos, por meio da influência na política partidária pelo proselitismo nos meios de comunicação de massa; 2) o rompimento com a salvação extramundana e seu ascetismo e rejeição do mundo, tendo como substituta a teodiceia de afirmação e dominação do mundo. Ao contrário da resignação, os neopentecostais são triunfalistas e intervencionistas; 3) como consequência lógica dessa inversão de perspectivas, temos a criação da teologia da prosperidade para gozo do dinheiro e dos prazeres mundanos; 4) e, como corolário, a ideia de que o serviço a Deus é mediado pelo pagamento em dinheiro: o dízimo – por óbvio – mas sobretudo “ofertas em profusão” (Souza, p. 142).
Quer dizer, mesmo que o programa afirme que o PT era um “um partido amplo e aberto a todos aqueles comprometidos com a causa dos trabalhadores e com o seu programa”, entendo que ele de fato esquece de fortalecer uma base importante, a Teologia da Libertação, cujo lugar junto às comunidades pobres passa a ser ocupado pelos evangélicos e sua Teologia da Prosperidade. Como se sabe, a Teologia da Libertação era o braço da igreja católica nas periferias que surgiu na década de 1960 como resposta à contradição entre a pobreza e a fé cristã na América Latina e que teve Leonardo Boff entre seus ideólogos. Criticando a realidade social, colaborava na conscientização da população pobre sobre o sistema, suas contradições e a luta por direitos. Realizando entrevistas com evangélicos negros, pobres, moradores de periferia, Souza observa como, graças a eles, essa população aderiu ao discurso de direita, defendendo Bolsonaro. “Prestar, ninguém presta, mas como ninguém presta, ele está na média geral”, recolheu Souza de seus depoentes. Mais, Souza encontrou ali também que a força do antipetismo popular é evangélica: segundo eles, a esquerda “quer destruir a sociedade, liberar a maconha”. “O negócio deles é só esse, entendeu?” Fragmento de um depoimento que, para Souza, revela que o que vale para as classes populares é “o ganho compensatório do narcisismo da pequena diferença, que está embutido na rigidez moral e regressiva das igrejas evangélicas” (p. 151). O desejo de transformar a sociedade virou o desejo de transformar a moral.
Lutar contra as prisões da ideologia de direita
Quando formulou seu manifesto, as lideranças queriam oposição ao regime da época que só beneficiava os privilegiados. Ela defendeu esse princípio afirmando que lutaria “pela extinção de todos os mecanismos ditatoriais que reprimem e ameaçam a maioria da sociedade”. O PT imaginava uma espécie de dualismo oprimidos/opressores e jamais imaginou que a opressão, nos termos de Han, poderia estar na cabeça dos oprimidos, que poderia adotar a ideologia liberal, que um dia poderia criticar as conquistas de direitos que outras categorias fizeram, como negros e comunidade LGBT+, que nos termos do manifesto eram “franquias que garantem, efetivamente, os direitos dos cidadãos e pela democratização da sociedade em todos os níveis”.
O que o manifesto defendia como liberdade com manutenção do direito de greve não foi “fraudado na hora de sua regulamentação”, agora basta que patrões exerçam seu poder no contexto do desemprego em massa para que os trabalhadores cedam de seus direitos; onde o Manifesto defendia a dissociação de sindicatos do Ministério do Trabalho, basta que um governo de direita impeça a contribuição sindical para enfraquecer o movimento dos trabalhadores; não é mais necessário lutar pelas diferentes correntes de opinião simplesmente porque os próprios veículos já tratam de eliminar toda e qualquer crítica à direita e ao controle que faz o poder econômico. Eu senti isso na pele: muitas vezes, minhas críticas à direita não eram consideradas por Zero Hora. Acho que cheguei a ser banido: simplesmente os meus e-mails voltavam automaticamente. Que forma de exclusão!, pensei. Nunca mais publiquei ali. Da mesma forma, a repressão aos movimentos populares deixou de ser apenas policial, como o documento indica: a ela acrescentou-se a repressão que ocorre pela falta de crença em alternativas. Reprime-se na consciência a ideia de outra forma de organização social simplesmente porque é impossível imaginar um mundo diverso do ultracapitalismo e uma classe trabalhadora que não seja precarizada. Fim do “um outro mundo é possível”, início da acomodação e sobrevivência ao mundo que está aí.
Retornar ao ideal de solidariedade social
No “mundo que está aí”, para as classes populares ou “o pobre de direita”, de que fala Souza, o Estado, a democracia, não é solução. A solução é a família. Não digo nada novo: a esquerda precisa saber como chegar a essas camadas. O discurso de que “a democracia plena e exercida diretamente pelas massas” dissolveu-se; fim da consciência política cidadã, substituída pelos imperativos de sobrevivência. Diz Souza após as entrevistas que “nenhuma outra questão importa, a não ser os “valores familiares” que estariam ameaçados por um presidente não cristão (leia-se não evangélico e não ungido pelos pastores). Sobre o resto da vida social, nenhuma palavra” (p. 157). Entendo que o ponto essencial é renovar e atualizar o ideal de solidariedade social, base de seu programa da esquerda. Como recuperá-lo junto às massas? Tais populações sequer imaginam que, no projeto original, a esquerda desejava que “as decisões sobre a economia se submetam aos interesses populares.” Talvez porque a esquerda não tenha conseguido operacionalizar isso, dado o sucesso da direita em enfraquecer o Orçamento Participativo. Por isso, é preciso que a esquerda volte às organizações de base, para iniciar um processo de reconscientização das massas que seja, ela também, baseada em ações próximas e urgentes que essa população demanda.
Os trabalhadores não querem mais a independência nacional, como anunciava o Manifesto, querem apenas que se encerre sua sensação de abandono. Deixaram de entender que a nação é o povo, substituindo-a pela família, ao contrário do que diz o Manifesto. Não imaginam as massas trabalhadoras governando a sociedade através do Estado simplesmente porque já acreditam de antemão que, qualquer que seja, os dominantes já venceram. Essa crença precisa ser derrubada, precisamos de experiências de esquerda que comprovem que isso é possível. É preciso atualizar os termos sociais do Manifesto do PT, pois não se trata, como ele diz, apenas “chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores”, se trata também de conquistar consolo para massas excluídas e precarizadas que veem repetir-se a desigualdade. Mostrar que ainda pode haver um mundo sem exploradores e sem explorados é o grande desafio da esquerda, mas para isso precisará lutar pela recuperação da solidariedade das massas.
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução da capa do livro Rose Zehner et Willy Ronis, de Tangui Perron