Durante o período da pandemia, um relato interessante passou a circular, em múltiplas e variadas versões, em torno de um suposto diálogo de um aluno com a antropóloga cultural norte-americana Margaret Mead (1901-1978). O jovem a teria questionado sobre o que para ela seria o marco zero de uma sociedade civilizada. Ela teria dito, para surpresa do aluno, que o primeiro sinal civilizatório fora o achado de um fêmur humano com uma fratura consolidada. A antropóloga justificaria então que qualquer animal ferido seria caçado por um predador e comido antes que pudesse curar seus ossos quebrados. Assim, uma fratura consolidada de fêmur era a prova inequívoca de que aquele ser humano teria recebido auxílio de outras pessoas: “Ajudar alguém em dificuldades é onde começa a civilização”, concluiria ela.
Mesmo considerando a graciosidade do diálogo, nada indica que tenha realmente acontecido. Talvez a historinha possa ser atribuída muito mais a uma das tantas tentativas de fazer circular mensagens altruístas em tempos de isolamento e incertezas.
Bem, se pelo visto essa história do fêmur parece ser meio de “perna quebrada”, alguns anos antes, mais precisamente em abril de 2005, a Revista Nature nos apresentava um personagem “banguela” que poderia assumir esse papel de alvo inaugural na gênese da solidariedade.
As escavações em Dmanisi, na República da Geórgia, revelam um registro extraordinário da primeira dispersão de hominídeos além da África (1,75 milhão de anos atrás). Várias ossadas desses hominídeos, juntamente com abundantes restos bem preservados de animais fósseis e artefatos de pedra, foram encontrados. Esses espécimes são os humanos mais primitivos e de cérebro pequeno encontrados fora da África a serem atribuídos ao Homo erectus sensu lato, e são os mais próximos do suposto fluxo semelhante ao Homo habilis. É amplamente reconhecido que as descobertas de Dmanisi mudaram o conhecimento dos cientistas sobre a migração da África para o continente europeu.
A evidência de um primordial sinal de compaixão humana pode ter sido um fóssil de quase 2 milhões de anos encontrado nessas escavações.
Os pesquisadores descrevem um crânio e uma mandíbula, bem preservados, de um homem de cerca de 40 anos, um “velho” segundo os pesquisadores, que perdeu todos os dentes, exceto o canino esquerdo. As cavidades dentárias foram reabsorvidas no crânio, sugerindo que ele havia perdido os dentes pelo menos alguns anos antes de morrer. A descoberta, segundo eles, representa o caso mais antigo de comprometimento mastigatório grave em registro fóssil. De acordo com o relatório da prestigiosa publicação científica, os restos mortais eram de um indivíduo que passou os últimos anos de sua vida com apenas um dente. Essa deficiência pode tê-lo obrigado à dependência da empatia de outros humanos para a sua subsistência.
Esse crânio sem dentes pode, portanto, atestar o mais antigo exemplo conhecido da evolução de algum tipo de cuidado aos idosos e deficientes na sociedade.
Perto desse local, os cientistas também descobriram ossos de animais com marcas de ferramentas. Para sobreviver sem a capacidade de mastigar ou morder carne, o indivíduo precisaria coletar alimentos macios suficientes, incluindo medula óssea, massa cerebral ou alimentos vegetais macios. Tal coleta ou processamento poderia ter sido feito sozinho, mas os cientistas postulam que outros indivíduos o tenham ajudado por causa da idade avançada ou doença responsável pela perda de seus dentes. A descoberta, concluem os autores, “levanta questões interessantes sobre estrutura social, história de vida e estratégias de subsistência do Homo primitivo que justificam uma investigação mais aprofundada”. Outros especialistas concordaram que a descoberta foi significativa, mas alertaram que pode também ser um exagero interpretar o fóssil como evidência de compaixão.
Não nos cabe escolher entre o sujeito da perna quebrada e o quarentão idoso e banguela da Geórgia, mas cabe lembrar uma lição de Platão (cerca de 427-347 a.C.). Segundo o filósofo ateniense, quando os deuses resolveram povoar o mundo, moldaram todos os animais com fogo e argila, e encarregaram os dois titãs, Prometeu, o previdente, e Epimeteu, o que pensa tardiamente, de equipá-los com o necessário para a vida. Epimeteu, como era de se esperar, adiantou-se: deu corpulência a alguns, agilidade a outros; uns foram armados com garras e chifres, outros foram deixados desarmados, dotados porém de asas ou pernas velozes para poder fugir; de uns fez predadores, de outros fez presas, mas deu a estes a bênção de proles mais numerosas para que nenhuma das espécies viesse a ser extinta.
Quando os titãs acabaram a tarefa, no entanto, viram que tinham esquecido o homem: nu, desarmado e indefeso. Para que ele sobrevivesse, Prometeu teve de roubar o fogo dos deuses e ensinar-lhe a misteriosa arte de domá-lo.
É essa criatura fragilíssima que vai exercer o domínio sobre todas as outras, porque é diferente. De todos os seres, o humano é o único que conhece o luto e o riso, que busca o prazer, que sofre com a ambição da riqueza e com a brevidade da vida, que se preocupa com a morte e até mesmo com o que vai acontecer depois, com o que é transcendente. O único ser que não se conforma com o impiedoso ciclo animal em que os mais fracos são aniquilados.
A espécie humana começou a tornar-se a mais forte de todas somente quando, num gesto solidário, este simples mamífero resolveu atrasar o seu passo para ajudar os retardatários, quando começou a sentir que devia carregar os feridos, proteger as crias abandonadas e dividir o alimento com os que não podiam caçar – quando assumiu que a fraqueza do outro era a sua fraqueza.
Nesse momento, inicia a longa jornada civilizatória. Para além do domínio do fogo, o calor do abraço.
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Foto da Capa: Edward Henry Potthast (1857- 1927). Campfire.