Costumo brincar entre amigos que algumas notícias alinham e desalinham meus chacras. Em uma tradução despretensiosa, quero dizer que certas informações, situações ou ditos mexem comigo mais do que o habitual de quem, por ofício psicanalítico, não está imune a ouvir um sem fim de barbaridades.
O último “alinhamento” foi há poucos dias quando Leila Pereira – presidente do clube de futebol Palmeiras e atual chefe da delegação da Seleção Brasileira na Inglaterra – realizou uma declaração contundente diante das idas, voltas e impunidades nos casos dos estupradores e ex-atletas Daniel Alves e Robinho. Disse Leila para o UOL: “Ninguém fala nada, mas eu, como mulher aqui na chefia da delegação, tenho que me posicionar sobre os casos do Robinho e Daniel Alves. Isso é um tapa na cara de todas nós, mulheres, especialmente o caso do Daniel Alves, que pagou pela liberdade. Cada caso de impunidade é a semente do crime seguinte”.
A palavra semente me pegou. Até então, vinha pensando de modo semelhante a boa parte das mulheres que se sentem injustiçadas com o acinte que a possibilidade da liberdade de Alves representa. Neste caso, 1 milhão de euros parece ser o valor de uma licença para estuprar o que, por si só, já é bastante injusto e revoltante. No entanto, quando Leila Pereira fala sobre “a semente do próximo crime” retumbou por aqui um senso de urgência ainda maior. Sabemos que essa disseminação do estupro não é novidade. Ela já vem em desenvolvimento há séculos e, não sejamos ingênuos, não sem método. A prova, leitores, é facilmente googleável: movimentos masculinistas, como incel e red pill, estão aí para quem quiser odiar as mulheres com técnica. Na mesma medida, parece que a tendência diante de tantos ataques é fazer com que nos contentemos com migalhas de justiça.
A deputada Maria do Rosário – goste-se ou não de sua atuação política – é uma mulher que foi atacada, pelo menos duas vezes (em 2003 e 2014), com a temática do estupro pelo, então, deputado e agora ex-presidente inelegível. Com o suficientemente conhecido: “Jamais estupraria você, porque você não merece”, “porque você é feia”, o representante mor do fascismo brasileiro se serviu de uma frase aparentemente sonsa, desconexa, mas que coloca em cena um mecanismo psíquico que chamamos de desmentida. A presença do “não” transtorna a mensagem fazendo com que a mesma pareça inocente, quando a produção resultante é a vociferação de um estuprador que poderia ser exposta nos seguintes termos: “Mulheres são ‘estupráveis’. Você também, porque qualquer corpo feminino é violável por nós homens, autorizados que somos a estuprar. Porém, vou deixá-la pensar em mérito e beleza e assim passo a violar, principalmente, a sua segurança sobre si mesma”. Bolsonaro está respondendo por crime de incitação ao estupro, um processo que, infelizmente, caminha para um arquivamento em definitivo. O prazer mórbido e a licença para tratar o tema com leviandade poucas vezes foram entendidos como graves e, não raras vezes, foram tomados como se tratando de um “mimimi” – todo o meu desamor por esse termo! – por parte da deputada. Assim, tantas vezes nos vemos obrigadas a comemorar cada processo que se instaura como uma vitória, quando, na verdade, são acenos ilusórios, apenas migalhas de justiça.
Nosso país exporta craques de futebol, mas não só. Também vão na bagagem toda uma cultura do estupro alicerçada por fortunas obtidas de um mercado que movimenta muitos bilhões de dólares. Se desde Roma se trata de pão e circo para manobrar as massas, o futebol é o circo mundial, o esporte mais pregnante, convenientemente desenhado para um capitalismo que só pode ser se for misógino e machista. Bem sabemos que isto também tem relação com a política. Não por nada, temos um jogador que, supostamente, é o mais talentoso do país como apoiador tanto do ex-presidente quanto do ex-atleta estuprador.
A verdade é que estamos carentes de boas sementes. Marielle Franco, barbaramente assassinada, por sorte, deixou as suas. Contudo, neste domingo as prisões dos irmãos Brazão bem poderiam ser confundidas com as sementes de justiça para Marielle. Não nos iludamos, são migalhas, pois a justiça virá quando nossos corpos e memórias deixarem de ser matáveis.
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Foto da Capa: Marcello Casal Jr | Agência Brasil