Quanto mais você passa tempo na internet nos dias de hoje, não só com todo o clima de Gre-Nal político, mas com a sanha incansável de sangue da massa periodicamente saciada por uma tempestade de ataques e agressões virtuais a algum personagem aleatório, mais você corre o risco de topar com algum engraçadinho recuperando a captura de tela de uma postagem feita por alguém 15 anos ou 10 anos antes com a frase-feita: “nada morre na internet”. Olha, eu REALMENTE adoraria que fosse assim, meu jovem, mas uma das coisas realmente preocupantes na forma como a rede se estrutura é que ela parece projetada, atualmente, para que tudo o que não seja a postagem recuperada com o intuito da humilhação sazonal de terceiros pereça de modo irreversível.
Quando eu estava na faculdade, nos hoje inacreditavelmente longínquos anos 1990, a internet comercial chegou ao Brasil. Ainda recordo com muita nitidez os debates e artigos que começavam a circular apontando o potencial revolucionário daquilo para “democratizar o conhecimento” – seguidos por inevitáveis alertas de que esse potencial só seria alcançado se o modelo da rede no Brasil seguisse parâmetros livres de censura oficial por parte do Estado. Alguns poucos alertaram para o fato de que havia um contramovimento já em marcha para tentar explorar essa potencialidade de modo comercial e que isso seria ainda mais perigoso do que regulamentações de governos.
Poucos deram bola para esse alerta em particular na época, a internet era deliciosa, o mundo ao alcance, mas sua navegação ainda era coisa para especialista – a própria noção de um “navegador” era pouco conhecida por quem estava de fora ou não tinha acompanhado o embrião daquilo em redes BBS. A própria tecnologia das ferramentas de busca hoje disseminadas era incipiente, e para encontrar de novo uma página que você tivesse achado interessante, a solução era salvar nos favoritos ou contar com a maré do acaso numa busca frustrada que poderia se assemelhar a uma consulta ao catálogo da Biblioteca de Babel borgiana.
Não, nada a ver. A internet seria para sempre essa coisa de malucos livres compartilhando conteúdo interessante. Era só você ter os links – aqui, a propósito, me permitam uma nota ranheta. Lamento que o deslumbramento provinciano do usuário de rede no Brasil tenha transplantado toda a linguagem associada à rede sem escalas do inglês, nos privando do “vínculo” que Portugal teve o bom senso de adotar no lugar desse Link que pra mim sempre me remete ao jogo The Legend of Zelda. Pronto. Fim do parêntese ranheta.
GUIAS DE LINKS
Sou velho o bastante para ter começado no jornalismo quando os veículos impressos estavam maravilhados com a internet e muitas revistas e jornais publicavam ao fim de cada matérias guias de links com endereços de fontes consultáveis ou mesmo como listas de “melhores” dessas que o Buzzfeed hoje faz. A ideia de imprimir o link de um site era “serviço ao leitor”, pautada por essa dificuldade intrínseca que havia em achar de novo algo com que se havia topado por acidente. Claro, isso mudou depois da gradual popularização das ferramentas de busca – primeiramente Yahoo, Altavista, Lycos e finalmente o Google, que começou a se fazer notar por toda parte ali por 1999, 2000 e hoje é o mastodonte global que vocês conhecem.
Por muito tempo, para o usuário comum sem grandes aprofundamentos no código-fonte, a unidade gramatical mínima da rede não eram os bits ou os zeros e uns, eram os links. Antes das redes sociais com seu modelo de compartilhamento ou do zap e correlatos com sua profusão de memes e figurinhas, muitos trocavam links em longas conversas via e-email. Era um modo de manter a conversa em andamento, reacender uma troca de mensagens coletivas que havia ficado meio morna, compartilhar interesses. Mesmo anos depois de a internet acenar uma mudança de curso em direção ao cenário que temos hoje, primeiramente com a popularização dos blogues e depois de todas as modas que se sucederam, como vlogs, tumblrs etc, o link era ainda mdc, o mínimo dado compartilhável que compunha as trocas de informações na rede, mesmo aquelas entre amigos em que um queria simplesmente comentar com o outro que havia encontrado um blogue muito engraçado em que um cara relatava todos os dias que tipo de pão com manteiga na chapa ele havia comido (acreditem, exemplo real).
LINKS PARTIDOS
Todo esse papo não é uma manifestação de saudosismo, ter saudosismo de tecnologia é estar próximo demais de um consumismo meio ingênuo e acrítico, então não sinto falta de vinil, de fita, de CD, tento não fetichizar o consumo de praticamente objeto algum a não ser, fraqueza admitida, livro de papel (esse animal também perigosamente em vias de extinção). Esta reflexão vai, na verdade, noutra direção, a de que como a gradual substituição da navegação web pelas redes e pelos aplicativos de celular representou não apenas uma mudança de relação com a mídia, mas um verdadeiro apagamento. Algo que não deixa de dialogar um pouco com as análises pessimistas de um teórico da pós-modernidade como Bauman, por exemplo, que via o fetiche da eterna renovação, o apagamento do passado e o estabelecimento de presente eterno transformado em geleia geral como as características mais marcantes da Modernidade Líquida.
A real origem deste texto é que esses tempos, pela primeira vez desde que abri uma conta no Gmail, lá por 2005, resolvi repassar as mensagens da minha caixa de entrada para jogar coisas fora, e nesse processo foi inevitável encontrar parte dessas longas conversas e trocas de e-mail do qual falei. Chamou-me a atenção de imediato o quanto trocávamos links até ali por 2010, em mensagens comentando mil coisas, achava-se um endereço de blog, de um site especializado, de uma revista eletrônica, até mesmo de vídeos de YouTube, ainda uma plataforma menos abrangente e com sérias limitações de duração de seu conteúdo possível.
Fazendo um teste sem muito método, sabe quantos desses links davam em endereços e postagens válidas? Menos de um terço. A ideia de que a internet era a circulação livre de conteúdo que estaria sempre lá, uma má compreensão que o usuário comum não pode ser culpado por ter desenvolvido, dado que era esse o discurso, se mostra equivocada quando se pensa que páginas desaparecem depois de alguns anos. Você sabia que uma coisa estava lá, não está mais. Os motores de busca, cada vez mais programados por algoritmos, procuram antes mil outras coisas de acordo com o potencial do usuário como consumidor. Menos aquilo que você está procurando. Logo, sim, muita coisa morreu na internet enquanto você não estava prestando atenção.
A VOLTA DA DIFICULDADE
Isso tem um efeito particularmente deletério quando se pensa que muitos links são colocados como fontes em trabalhos acadêmicos, por exemplo. Papers, ensaios, dissertações, teses trazem constantemente em suas notas de rodapé e páginas de referências links para a fonte de algumas de suas citações e informações. A regra número 1 de qualquer produção científica de conteúdo é você apresentar as frontes para revisão e confronto. Como ficam então os trabalhos que se valem de elementos que viravam vapor meros cinco anos após sua produção e defesa? Numa tentativa frustrante de admitir a precariedade desse tipo de citação, costuma-se declinar a última data em que o endereço foi consultado, mais ou menos como um lavar de mãos insuficiente dizendo “eu juro que estava lá quando eu saí” (Ou, para citar Marx, “eu juro que eu a deixei lá sã e salva” – Richard Marx, claro, qual Marx vocês acharam que seria?).
A ideia da democratização do conhecimento lá na origem tinha muito a ver com acesso. Um determinado tipo de conhecimento existia, era produzido, mas circulava pouco para fora dos pares e profissionais da pesquisa e da academia. Nada que tenha mudado muito com a política radical de direitos autorais que inviabilizou o compartilhamento e o reaproveitamento de muita coisa depois que se instalou na rede, algo que já era denunciado em 2009 pelo historiador Robert Darnton em seu ensaio A questão dos livros, ao falar sobre um processo judicial que definiu uma disputa entre autores e o sorrateiro Google com seu ambicioso processo de digitalização:
“Se o Google tornar disponíveis, a um preço razoável, os acervos combinados de todas as principais bibliotecas americanas, quem não irá aplaudir? Será que não é preferível um mundo em que esse corpus imenso de livros digitalizados esteja disponível, ainda que a um preço alto, a um mundo em que ele não exista? Talvez, mas o acordo cria uma mudança fundamental no mundo digital ao consolidar o poder nas mãos de uma única empresa.”
O preço, esse elemento pouco mencionado, é um dos motivos pelos quais links morrem por abandono. Seu proprietário deixa de pagar o “domínio” (num paradoxo muito revelador das noções básicas de internet, o “domínio” é “hospedado” em algum outro lugar e, se não tiver sua licença renovada, perece). Quem confiava demais na rede para voltar lá e encontrá-lo um dia topa com um vazio (ou pior, um anúncio de que o domínio está disponível). Claro que, para os interessados, há estratégias, como salvar alguns desses endereços em mecanismos do Internet Archive, por exemplo, mas esse é o tipo de truque que não ocorrerá a todo mundo ou que a maioria sequer ouviu falar. A restrição outra vez, os profissionais navegando num mar cada vez mais rarefeito.
E depois o pessoal se surpreende que até mesmo a ideia de verdade tenha sido erodida na última década…