Durante um breve período em minha tenra juventude, morei em uma quitinete no 17º andar de um edifício situado numa galeria no Centro de Porto Alegre, com entrada pela Doutor Flores. O lugar era algo sinistro – quando comecei a trabalhar na redação de Zero Hora, mais ou menos na mesma época, minha colega da editoria de polícia Adriana Irion, ao me dar uma carona certo dia, surpreendeu-se com o lugar e comentou: “Bah, eu já vim fazer uma matéria sobre um homicídio neste prédio. Um cara perseguiu outro por três andares pelas escadas antes de encher o morto de facadas”. O elevador estragava praticamente toda semana, o que era garantia de pelo menos meia hora esperando o conserto. Uma vez, o elevador trancou de noite e eu meio que fui obrigado a dormir nele por algumas horas. Acordei com um ratão passando por cima da minha perna e passamos o resto do tempo em que não consertavam aquela joça nos encarando nos dois cantos do elevador, no lusco-fusco das cambiantes luzes de emergência. Quando eu me mexia, ele ficava em duas patas e erguia as unhas para mim de modo ameaçador. Quando eu ficava quieto, ele tremia num canto, provavelmente tão assustado quanto eu. O apartamento em que eu morava também não era muito melhor: o que nele havia de mais amplo era a janela. E o que de melhor tínhamos naquele lugar situava-se do lado de fora: a vista do rio, do sol, do aglomerado de ônibus e de gente da Praça Ruy Barbosa.
Toda vez que penso naquela época e naquele lugar, minha memória divaga até enxergar todas essas aventuras miúdas e banais da vida cotidiana como representativas da Porto Alegre que faz aniversário esta semana, uma cidade perigosa, com infraestrutura degradada, sem muitos atrativos a oferecer a não ser uma linda vista que um bando de ratazanas arrombadas parece atualmente dedicada em tapar com torres de vidro.
Porque convenhamos, Porto Alegre é feia. Já era feia quando me mudei para cá, em 1992, mas piorou sensivelmente desde então, uma cidade que teve a pachorra e a cara de pau de destruir praticamente tudo o que podia ser chamado de histórico em seu Centro e, na época da Copa, para navegar no marketing que envolvia o Mundial, pendurou placas chamando de “Centro Histórico” aquilo que não tinha mais nem a condição de ser lamentado como ruína. Porto Alegre é feia há décadas, mas isso não significa que não haja nela belezas, o problema é que elas vêm sendo sitiadas e destruídas por uma mentalidade jeca que parece mirar no que de pior tem São Paulo, sem nenhuma das óbvias benesses, como um mercado de trabalho gigantesco e uma possante indústria de serviços. Fica-se apenas com o que há de mais provinciano na empreitada: capitalismo selvagem e torres de vidro.
Pra cima
Porto Alegre apodrece para cima. Pedaços de história são arrasados por uma patrola para que possam se erguer do chão torres de vidro, aço e concreto cada vez mais conspícuas em sua feiura sem cerimônia, cada vez mais desumanas em sua configuração brutalista pouco imaginativa que transforma o horizonte em caixas e pacotes. Prédios de vidro e aço em uma cidade que destrói o verde e corta qualquer coisa que cresça do solo maior que um pé de alface, e que depois se surpreende com as altas temperaturas a cada verão. O tanto de árvores removidas nos últimos cinco anos para que uma nova caixa abrigue um Zaffari ou alguma nova farmácia ou para que a burguesia estacione seu carro com ar-condicionado para tomar cerveja cara debaixo de um toldo de plástico poderia ser metaforicamente chamado de criminoso se a atual administração de Porto Alegre não tivesse participação, ainda que indireta, em um crime ambiental de fato, o corte de árvores da espécie Pau-Brasil na Avenida Edvaldo Pereira Paiva, em um período em que a prefeitura simplesmente decidiu passar o serrote em qualquer coisa vegetal que encontrasse, na Edvaldo, na presidente João Goulart, na Anita Garibaldi. O então, prefeito, José Fortunati, justificou o corte dizendo que “ninguém usava as árvores”. E nunca é demais lembrar (a não ser que você seja colunista da principal rede de comunicação do Estado, onde esse tipo de obra é meio que incensada por política editorial) que na época o vice-prefeito era o nosso atual administrador. E que suas próprias políticas na prefeitura até agora não se diferenciam muito das de seu então parceiro de gestão: desmatamento, liberação a rodo de licenças de construção, abertura de “empreendimentos” que nada mais são do que uma desculpa para gentrificação – os infames “espaços” que a Melnick anda semeando na cidade, por exemplo, com food truck, grama sintética e paredes de metal corrugado, por exemplo, não valem o que esses caras estão destruindo da cidade. Minha opinião, mal aí.
Província
Porto Alegre, sejamos honestos, é uma cidade provinciana, com uma mentalidade que tenta desesperadamente correr em direção ao cosmopolitismo, mas está amarrada pelas cordas trançadas do gauchismo tacanho; é uma “Moscou no Inverno, Manaus no Verão”, como disse certa vez o Caio Fernando Abreu; é arquitetonicamente desastrosa e parece ter mania de derrubar aquilo em si que tem de mais bonito em nome da grana que, ao contrário da do Caetano, só “destrói coisas belas”; é cheia de uma arrogância despropositada se comparada com a realidade de sua atual importância política e tem uma das elites financeiras e sociais mais lamentáveis de qualquer quadrante.
Talvez pela forma algo agressiva e por vezes indignada com que me expresso neste texto, alguns dos meus leitores, na hipótese de que eles existam, pensem que não gosto da cidade. Eu gosto, mas penso, humildemente, que gosto do jeito certo. Porto Alegre não é para ser amada incondicionalmente, é para ser apreciada no meio do trauma. Sabe quem ama Porto Alegre quase sem restrições nos dias de hoje? Empresários que veem nela um pátio aberto para negócios com a ajuda mais do que dadivosa da prefeitura que seu eleitorado escolheu. Publicitários que decidem perverter o uso da linguagem para vender uma ideia sem lastro na realidade, como a de um “bairro privativo” – estão construindo um perto da minha casa, aliás, e todos os dias minha vontade quando passo ali é pegar um megafone e ficar meia hora gritando “se é privativo, não é bairro. Se é bairro, não é privativo, seus arrombados do cacete”, mas eu não faço isso porque eu nem tenho um megafone, pra começo de conversa.
Quem nada nos privilégios é que ama Porto Alegre e a canta como se fosse um lugar diferente. Há um cronista de sobrenome histórico, por exemplo, hoje um tanto sumido, que em mais de uma de suas crônicas vagamente empoeiradas e cheirando a bolor, em seus vezos de lirismo parnasiano, já comparou a Porto Alegre dos anos 1940 a uma belle époque parisiense fora de época e lugar. Há um outro autoproclamado porta-voz da elite porto-alegrense que tonitrua o Moinhos de Vento como uma ilha de civilização no meio da ralé ignara, em boa parte vinda do Interior, que trouxe consigo muito do que ele considera a decadência de uma cidade que já teve tempos áureos. Ah, tá.
Quem ama Porto Alegre ama não por causa, mas apesar de, sabendo que é uma cidade cujo amor é difícil, por vezes mesquinho. Quem tem motivos para amá-la sem reservas é porque provavelmente está bem acomodado em algum lugar construído sobre os ossos e a carne de terceiros…
Ser de Porto Alegre
Aliás, já que falei isso, eu sou da ralé, ignaro e vim do Interior. Essa, aliás, era uma ideia errada que eu fazia até ali aos meus seis, sete anos e da qual ainda me recordo vividamente: a de que ninguém nascia em Porto Alegre, as pessoas só vinham pra cá. Havia um tio que se mudou para Porto Alegre ainda muito jovem. Todo mundo também falava de um ou outro vizinho que havia se mudado também, bem como outros conhecidos, de Rosário ou Cachoeira, que agora moravam na Capital, e isso criou em minha cabeça infantil no Interior a impressão de que não se nascia em Porto Alegre, mas que a cidade era um grande espaço vazio que foi sendo ocupado por pessoas que progressivamente iam se mudando para lá. O que, claro, não tem a menor lógica se pensado com a cabeça de um adulto, mas fazia algum sentido em meus anos pueris.
Não sei qual a percentagem de moradores de Porto Alegre é “de fora”, como dizíamos na minha cidade natal. Mas sei que eu sou deles. Minha cidade de nascimento é um acidente biográfico. Minha cidade é Porto Alegre, esta cidade que se ama com um amor ferido que se refugia na ironia – e talvez isso seja a chave para um dos aspectos da arte feita na cidade que me cansam um pouco se eu for pensar no assunto: sua ironia autoconsciente que me parece tomar conta da coisa toda, um pouco como azeitonas: passou do ponto e, não importa quão saboroso seja o prato, você só sente o gosto daquilo.
É a minha relação, por exemplo, com Amigo Punk, hino informal da cidade que também já muito entoei bêbado em algum bar da cidade. Sempre me pareceu uma espécie de comédia alimentada no absurdo, até um dia em que tive uma longa conversa com Frank Jorge no Ossip em que ele passou um tempão me explicando que havia ali sim algum afeto genuíno pelas raízes do Interior que eram também as dele, numa tentativa séria e, para ele rigorosa, de unir as vertentes do campo e da cidade na Capital por meio de seu rock-milonga. E até hoje penso que esse é o tipo de pensamento de base que só é reconhecido em Porto Alegre, mas que não tem a menor conexão com a vertente “interiorana” da coisa, dado que a canção no Interior é vista por muita gente como uma sátira ao tipo do “homem do campo”.
Campo e Cidade
Essa fratura entre campo e cidade na qual o Interior meio que se sente ofendido por Porto Alegre mesmo quando está em seu território também pode ser encontrada na origem do próprio movimento tradicionalista nos anos 1930. Três adolescentes acharam que Porto Alegre fazia pouco do legado farroupilha e deram origem a uma onda que empolgou o estado e foi assumida como “identidade” mesmo dos muitos filhos de imigrantes que vieram para cá e não tinham contato nenhum com aquelas supostas tradições. É um embate que vemos até hoje quando se fala da sempre criticada Superteta, na beira do Guaíba, uma obra do artista Saint-Clair Cemin que transformou um aglomerado de cuias numa espécie de bactéria gigante, mas que, para os integrantes mais ferozes do MTG radicados em Porto Alegre, é uma excrescência por lembrar “um conjunto de tetas” – poderia ser uma caricatura de minha parte se eu não tivesse ouvido pessoalmente mais de um personagem dizer essas palavras textuais (incluindo o hoje já falecido Bernardino Vendrusculo, então vereador e inimigo jurado do monumento). Sempre me pareceu um delírio gigantesco essa opinião quando a relação entre cuia e tetas não foi estabelecida por Cemin ou pelo público, mas já estava lá em um poema de um dos fundadores do próprio movimento tradicionalista, Glaucus Saraiva: “E a cuia, seio moreno / Que passa de mão em mão / Traduz, no meu chimarrão / Em sua simplicidade / A velha hospitalidade /Da gente do meu rincão.” Por que a indignação, então?
Talvez por isso parte da arte que eu mais aprecio feita em Porto Alegre seja tão afundada na ironia, na paródia, no pastiche (as melhores do Kleiton e Kledir nos anos 80; o rock absurdo “engraçadinho” dos anos 90; a música “desconstruída” com um caldo de elementos provenientes de toda parte, como o Tangos e Tragédias ou algumas das coisas do Arthur de Faria; peças de teatro na qual a emulação de uma outra linguagem é a tônica, como programas de rádio ou shows de variedades; os romances de Moacyr Scliar ambientados na cidade, a lista é longa, menos a insistência local na genialidade do Plato Dvórak, que essa é uma piada que eu nunca entendi, confesso). Talvez a ironia esteja tão presente nessa arte porque ela é feita, talvez de modo inconsciente, na contraposição de uma turma tradicionalista que também habita e produz na cidade e tem como característica marcante se levar muito, muito a sério – a não ser quando resolve usar humor para contar piada contra minorias.
Claro, estou só fazendo uma navegação confusa e sem critério sobre essa cidade e sobre os sentimentos que ela me desperta, não é só isso, claro, há muita sinceridade não irônica em canções de Nei Lisboa, nos últimos trabalhos de Nico Nicolaiewsky, ou na Porto Alegre de Josué Guimarães em Camilo Mortágua.
E se esta é uma cidade que nos desperta tanta confusão e uma mistura indistinta de apreço e repulsa, é porque ela nos marca. Ao menos me marcou, é responsável pelo eu sou até hoje. Me deu as mais marcantes experiências de minha vida, alguns amores, um número surpreendente de amigos, me deu memórias, lugares (alguns deles a prefeitura e a construção civil me tiraram, mas eu já falei disso e não quero entrar em looping), me deu uma visão que é passional mas crítica. Porto Alegre é demais não no sentido que o Fogaça canta, às vezes ela é demais da conta, é demasiado triste, é desmedidamente decepcionante. E mais de uma vez ela comprovou que é alegre só no nome, este “Gay Harbour” do qual falava Caio Fernando Abreu, bradando contra uma mini metrópole com mentalidade tão careta que parece a de hoje… Mas ele mesmo dizia que não é verdade que estava apaixonado por ela, mas que talvez estivesse rolando um clima.
É um pouco isso. Porto Alegre se acha.
E é um pouco mala, às vezes.
Mas eu gosto dela igual.
Parabéns a alguns de nós (outros, que se explodam), por esta Porto Alegre e seus 252 anos de desastres acontecidos e evitados.
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Foto da Capa: Vista aérea de Porto Alegre nos anos 1950.