Na semana passada escrevi a respeito dos ciclos de vida da família, chamando a atenção de que o nosso ciclo de vida individual acontece dentro desse ciclo de vida, salientando a importância da relação familiar e intergeracional para a longevidade saudável.
Além disso, também chamava atenção de que é preciso ter um olhar ampliado para a família, pois ela não é formada apenas pelo nosso pequeno núcleo, mas por vários núcleos, que integram a nossa grande família. Também abordei quanto a necessidade de atualizarmos o nosso entendimento sobre o que é o padrão de família frente a diversidade de modelos com que hoje convivemos.
Fruto do texto escrito na coluna, confesso que recebi com surpresa os muitos retornos de leitores me abordando sobre as dificuldades de relacionamento na família nos dias atuais. Fiquei a pensar sobre vários aspectos dessa questão. Será que estamos vendo nas famílias reflexo ou causa do que acontece no restante da sociedade?
Algoritmo das relações
Vivemos em tempos onde parece que a toda hora precisamos validar o que comemos, fazemos, pensamos, vestimos. Desejamos os likes. Afinal, eles nos dirão em que medida somos mais ou menos gostáveis no mundo em comparação aos demais. Assim, refletindo o que buscamos e encontramos nas redes sociais, “na vida real” estimulamos a convivência com os que vivem na nossa bolha confortável, que nos aceitam e validam como boas pessoas.
Acontece que família a gente não escolhe, as pessoas entram nela por nascença, adoção ou casamento… e pra sair, só morrendo ou descasando. Assim, a existência do conflito dentro da família está posta desde a sua origem. Mas no passado, em estruturas familiares onde mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo, diziam que “tudo ia bem” já que muitas vezes o medo era confundido com o respeito.
Hoje, as vozes são múltiplas e o conflito declarado, com a diversidade de estilos de vida e pensamentos existentes, desde o “tio da Sukita” (quem não souber a referência, procure no Google), o “tio do Pavê ou Pra Comê”, a “tia bolsonarista”, a “sobrinha comunista”, a “irmã feminazi”, “a mana igrejeira”, “o primo playboy”, “o sobrinho gay”… tudo junto misturado. E aí, o bicho pega, né? Como ficam o vô e a vó que querem ver a família unida no almoço de domingo?
Em busca da felicidade
Vivemos como se a felicidade fosse algo que se alcançasse e permanecesse conosco. Mas as coisas não funcionam assim. A vida é feita de altos e baixos. Nela precisamos lidar com conflitos diariamente. Na rua, no trabalho, em casa. A gente vive na negação de que pode evitá-los, acreditando que assim teremos uma vida feliz.
Eudemonia x Hedonia
Aristóteles, há dois mil anos, empregou um termo chamado Eudemonia, quando temos profundo bem-estar fruto de um propósito e sentido na vida, o contrário de Hedonia (daí hedonismo), que seria a felicidade fugaz. Então, felicidade eudemônica é o sentimento de boa vida, aquela que resiste aos altos e baixos, pois por mais prazerosa ou difícil que ela esteja, sabemos que ela vale a pena e é preciosa. Acredito nesse tipo de felicidade.
A pandemia
Sinto que as famílias sofreram demais na Pandemia com o distanciamento que tivemos que praticar. A sensação que tenho é a de que nossos laços se fragilizaram, ainda mais, já que os pontos de contato presencial que as famílias ainda mantinham se desvaneceram, frente à necessidade da proteção individual e comunitária contra o vírus.
É a política?
Muitos que me procuraram no particular para falar sobre a coluna da semana passada me trouxeram como causa das suas experiências de esgarçamento das suas relações familiares no campo político-partidário. Com relação a isso, fiquei a me perguntar:
- Será que o foco dessas pessoas está na manutenção das suas relações e na convivência daquela família, ou será que está baseada na tentativa de convencimento do ponto de vista de cada um/a?
- Se os laços afetivos ainda estivessem aquecidos, será que a questão político-partidária teria sido justificativa suficiente para cortar o vínculo com a filha amada, com o tio que te levou para passear desde a infância, com a prima que foi contigo nos primeiros bailes da vida?
Comunicação sem violência
Uma abordagem poderosa para melhorar nossa conexão conosco, com as pessoas e, mesmo conflitos políticos globais, é a comunicação não-violenta ou também conhecida como CNV, criada por Marshall Rosenberg. Ela se baseia em quatro componentes:
- Observação
Em primeiro lugar, é necessário observar o que realmente está acontecendo em determinada situação, pode ser interna, interpessoal, familiar ou mesmo em outro grupo. Faça essa observação sem julgamento, sem fazer juízo de valor (que é diferente de juízo moral), apenas compreendendo o que gosta e o que não gosta no que está acontecendo e no que o outro faz.
Ex: “Nas últimas três vezes que marcamos nosso almoço de família você chegou atrasado sem nos avisar” em vez de “Você tem chegado sempre atrasado*.
- Sentimento
Depois, é preciso entender quais sentimentos aquela situação desperta em você. É importante nomear o que se sente, por exemplo, solidão, mágoa, alegria, medo, cansaço, raiva, entre outros. Marshall Rosenberg, afirma que é importante se permitir ser vulnerável para resolver conflitos e saber a diferença entre o que se sente e o que se pensa ou interpreta.
Ex: “Nas últimas três vezes que marcamos nosso almoço de família você chegou com quase uma hora de atraso sem nos avisar (observação). Quando isso acontece percebo que me sinto muito irritada e desapontada (sentimentos)”
- Necessidades
A partir da compreensão de qual sentimento foi despertado, é preciso reconhecer quais necessidades estão ligadas a ele. Rosenberg ressalta que quando alguém expressa suas necessidades, há uma possibilidade maior de que elas sejam atendidas e que a consciência desses três componentes vem de uma análise pessoal clara e honesta. Por trás de um comportamento há um sentimento e por trás de um comportamento agressivo há uma necessidade não atendida.
Ex: “Nas últimas três vezes que marcamos nosso almoço de família você chegou com quase uma hora de atraso sem nos avisar (observação). Quando isso acontece percebo que me sinto muito irritada e desapontada (sentimentos), pois sou quem organiza o almoço e precisamos de previsibilidade para servir o almoço para todos, em especial para o pai e a mãe, que estão muito idosos (necessidade)”
- Pedido
Por meio de uma solicitação específica, ligada a ações concretas, é possível deixar claro o que se quer da outra pessoa, utilizando uma linguagem positiva, clara e afirmativa para fazer o pedido. Evite frases abstratas, vagas ou ambíguas.
Ex: “Nas últimas três vezes que marcamos nosso almoço de família você chegou com quase uma hora de atraso sem nos avisar (observação). Quando isso acontece percebo que me sinto muito irritada e desapontada (sentimentos), pois sou quem organiza o almoço e precisamos de previsibilidade para servir o almoço para todos, em especial para o pai e a mãe, que estão muito idosos (necessidade). Você poderia me avisar assim que soubesse que não poderá chegar na hora acertada para que eu pudesse fazer os arranjos necessários? OU Você se importaria se, nas próximas vezes, a gente mantivesse o horário combinado e não o esperássemos para o almoço? (pedido)”
Fácil assim?
Convenhamos, é um bom começo, concorda? É necessário deixar espaço para a outra pessoa. Há que considerar os sentimentos, as necessidades e o pedido para que se construa a melhor solução. Para isso escuta ativa, postura de abertura e colaboração, foco para solução do problema e não no comportamento.
Para uma boa vida
Sempre é importante lembrar que o estudo da Universidade de Harvard desenvolvido desde 1938, o mais longo estudo cientifico concluiu que o que realmente faz as pessoas felizes e saudáveis é a qualidade dos relacionamentos. Viver num ambiente de relacionamentos calorosos protege tanto a mente quanto o corpo.
As pessoas mais ligadas a família, aos amigos, e à comunidade são mais felizes e fisicamente mais saudáveis do que aquelas menos conectadas. Quem se sentiu menos conectado sentiu a saúde declinar mais cedo.
Nunca é tarde demais. Os seus genes e suas experiências podem moldar a forma como você vê o mundo, a maneira como você interage com as pessoas e com os sentimentos negativos. Mas isso não é imutável, isso não está escrito em pedra e pode ser ressignificado. Sempre há tempo.