Eu penso muito na gramática e no quanto ela é muito mais do que meramente regras formais de escrita. É uma linguagem que se estabelece e que viabiliza (ou trunca) a comunicação entre os indivíduos. Uma vírgula errada pode mudar completamente o sentido de uma frase e mudar uma vida inteira, uma história inteira.
Os tempos verbais também sempre me intrigaram, bem como os diferentes tipos de porquês. Cada uso, um destino. Hoje pela manhã, ao ler um texto com o uso do pretérito mais-que-perfeito (os nomes deles também acho interessantíssimos), esse que usa os verbos “aprendera”, “lembrara”, pensei em um tipo de expressão nominal que sempre gostei de exercitar na escola: o particípio. Transformar verbos em particípio. Aqueles que terminam em “ido”, “ida”. Algo que já foi realizado, uma ação já concluída. Não me perguntem o motivo de eu gostar. Eu, que também sempre fui fã de crases bem empregadas.
Comecei a dançar com os particípios. Queria ser consumida pelos particípios muito mais do que pelos substantivos. Esse prazer escolar e agora da vida adulta de ver as ações concluídas, as que são possíveis de se enxergarem encerradas. Mas tudo isso é delírio da escrita, devaneios de quem se aproveita da gramática para desvirtuá-la e fazer novas linguagens, novas escritas.
A escrita. O corpo no papel. Minha devoção pela escrita, pelo que já foi e pelo que existe, mas ainda não foi escrito – ato já acontecido – me perturba a tal ponto que a espero chegar, não forço que venha, que aconteça, não a procuro. É ela quem me encontra, mesmo quando não quero. A escrita tem que me encontrar distraída, mirando nuvens. Preciso eu da convocação, não ela. Ainda assim, não é magia. Não é encanto, é encontro. Por isso mesmo, não pode ser estudado, ainda que deva. Exaustivamente. Mas o estudo é por dentro. Não acredito em quem diz que escreve para fugir de si. Até pode, mas aí, para mim, não é escrita.
Esse texto não tem pé nem cabeça, só tronco. Não sei por que essa ideia de escrever sobre o particípio. Texto entregue, ideia concretizada, criatividade resgatada. Tudo já feito, mas jamais pronto. Na verdade, a ideia original do texto da semana era falar sobre aqueles jogos da infância da década de 80/90. Jogos de roda, como ovo podre, dança das cadeiras, polícia e ladrão. A ideia original era falar sobre como esses jogos evocavam o temor universal de ficar de fora, de perder o lugar, de ser o escolhido para receber o ovo podre, de ser quem corre atrás dos outros e se sente, acima de tudo, só. Todos os jogos trazem em sua essência uma luta contra a solidão e a perda do outro.
Talvez a linguagem também seja uma forma de jogo que aprendemos a jogar desde a infância e passamos a vida revendo e reaprendendo. A gente aprende a se comunicar para não cair na solidão, para que um outro nos enxergue e valide nosso desejo e até nossa existência. Hoje, se até as regras gramaticais mudaram, por que os jogos também não mudariam? Mas a busca pela evitação da perda jamais termina. Talvez estejamos voltados demais aos particípios, ao que já foi realizado, feito, cumprido, conquistado. Quem sabe possamos viver mais de substantivos e menos de verbos. Fazer e fazer incessantemente está nos adoecendo. Ninguém está propriamente ganhando nesse jogo da vida enquanto não aprendermos a saber usar nossa linguagem a nosso favor, contra a solidão.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
Todos os textos de Luciane Slomka estão AQUI.